Adoraria poder comemorar o resultado das urnas. Independente dele, venceu a democracia brasileira que vem se consolidando desde o fim da ditadura militar. Em vez disso, sinto um profundo pesar. Não pelo resultado em si, mas pela reação de muitos. Jamais poderia imaginar que o povo brasileiro fosse capaz de tão grande demonstração de xenofobia. Entre as propostas ventiladas durante os ânimos alterados, o Coronel Paulo Telhada, vereador do PSDB por São Paulo, propôs que o Sul e o Sudeste se separassem do resto do Brasil, inclusive do Rio e de Minas Gerais, pois teriam contribuído decisivamente pela reeleição de Dilma Rousseff.
O delegado Romeu Tuma Júnior, desafeto do PT, propôs que se construísse um muro que separasse o Brasil do Norte e do Nordeste, do país do Sul e do Sudeste. Vindo deles, eu até relevaria. Mas o que mais me causou estranheza foi ver manifestações semelhantes por parte da população, incluindo, muitos cristãos. Alguns chegaram a referir-se aos nordestinos como porcos e burros. E eu que sempre acreditei que o Brasil fosse um país livre deste tipo de preconceito. Até admitia algumas ocorrências pontuais, mas nunca poderia supor que a coisa alcançasse este patamar. Li gente que disse que 48% dos que trabalham terão que carregar nas costas os 51% dos vagabundos e preguiçosos do nordeste. Que lástima! Outra comentou que os nordestinos vêm para o Sudeste só para sujar nossas cidades. Argumentei com ela que sujeira é o que fazemos em suas praias paradisíacas quando passamos nossas férias lá. Ela em respondeu que era educada e prezava pelo meio-ambiente e que, portanto, jamais faria algo assim. Respondi-lhe que se ela é exceção, temos que considerar que haja inúmeras outras exceções, tanto lá, quanto cá. Não se pode generalizar. Resolvi, então, postar uma série de fotos das capitais nordestinas, para mostrar aos meus amigos nas redes sociais o quão próspera e desenvolvida é aquele região. Infelizmente, o povo brasileiro prefere viajar para Miami ou para o Caribe, e, por isso, desconhece seu próprio país. Lembrei-me de um texto que escrevi tempos atrás e que retrata esta nossa mania de construir muros e de como o Filho de Deus transitou por entre eles sem jamais respeitá-los. Ei-lo abaixo. Leia-o e se achá-lo edificante, envie-o para seus contatos.
Gosto de observar a ordem em que os acontecimentos são relatados nos Evangelhos. Creio que desperdiçamos muitas mensagens quando nos atemos apenas aos acontecimentos em si, e não enxergamos suas entrelinhas. Deus Se revela nos flagrantes contrastes dessas passagens!
Lucas nos descortina um episódio em que Jesus Se dirige à Jericó (Lc.18:35-43). Antes de entrar na cidade, Ele Se depara com um cego “assentado à beira do caminho, mendigando”, cujo nome é Bartimeu [1]. Depois de clamar insistentemente pela misericórdia do Filho de Davi, Jesus manda chamá-lo e restitui sua visão. Bartimeu, um homem marginalizado, um excluído da sociedade de Jericó, é a primeira pessoa a quem Jesus direciona Sua atenção.
Mas ao atravessar os muros da cidade, Jesus Se depara com outro homem, pertencente à elite de Jericó. Enquanto Bartimeu vivia do lado de fora da cidade, Zaqueu, o chefe dos coletores de impostos, vivia luxuosamente na parte mais requintada de Jericó. Ambos eram cegos. Bartimeu sofria de cegueira física, enquanto Zaqueu de cegueira espiritual. Ambos deviam sua condição social à ganância. Um era vítima, o outro o algoz. Talvez jamais houvessem prestado atenção um ao outro, e sequer sabiam de sua existência. Porém ambos queriam muito ver Jesus. Lucas diz que Zaqueu “procurava ver quem era Jesus, mas não podia” (Lc.19:3). Não por causa de alguma deficiência visual, mas porque era nanico. A fim de avistá-lO no meio da multidão, Zaqueu tratou de escalar uma árvore, meter-se entre sua folhagem, e ali, discretamente, sem almejar qualquer atenção, esperou até que Jesus passasse. Veja a diferença gritante entre Bartimeu e Zaqueu. Não apenas diferença social, ou cultural, mas também comportamental. Bartimeu queria a atenção de Cristo, e por isso não poupou sua voz. Esguelou-se ao ponto dos discípulos rogarem que se calasse. Já Zaqueu preferia a discrição, a camuflagem de uma árvore, a preservação de sua imagem pública. De lá, ele podia ver sem ser notado, espiar sem se expor, numa espécie de voyeurismo desprovido de culpa. Afinal, um homem importante como ele não podia correr este risco. Mas para a sua suspresa, Jesus não hesita em mirar por entre as folhas da árvore e dizer: Desce depressa, Zaqueu! Hoje vou me hospedar em sua casa.
O que desejo ressaltar aqui é que Jesus não se importou com qualquer convenção social. Ele simplesmente ignorou o muro que separava aquelas duas classes sociais. Ele deu atenção tanto ao que vivia de esmolas, quanto ao que vivia de explorar seus semelhantes. Entretanto, devemos realçar que primeiro Ele voltou Sua atenção para o explorado, e só depois para o explorador. Sua prioridade sempre foi os oprimidos, os marginalizados, os excluídos, aqueles que ficam "à beira do caminho". Porém jamais deixou de atender também ao opressor, acolhendo-o e convidando-o ao arrependimento. Bartimeu e Zaqueu são subprodutos de uma sociedade injusta, engrenagens da mesma máquina social. Uns com tanto, outros com tão pouco. Uns clamando por misericórdia, outros por privacidade. Uns sem ver, outros sem querer ser vistos. Uns se valendo a compaixão alheia, outros se valendo da ignorância das massas.
Mas há algo mais que não podemos deixar passar despercebido. Que cidade era aquela? Jericó. Isso te lembra alguma coisa? Trata-se da mesma Jericó, cujos muros foram derrubados por Deus na ocasião em que o povo de Israel, liderado por Josué, marchou por sete dias ao seu redor.
Ora, se Deus derrubou aquele muro, o que é que ele fazia de pé, dois mil anos depois?
Foi durante o reinado do perverso Acabe, que Jericó foi reconstruída. Os créditos por esta “façanha” entraram na conta de um tal Hiel, o betelita, que pagou um alto preço pela sua ousadia.
“Em seus dias Hiel, o betelita, reconstruiu a Jericó. Pelo preço de Abirão, seu primogênito, lançou-lhe os fundamentos e pelo preço de seu último filho, Segube, assentou-lhe as suas portas, conforme a palavra do Senhor, falada por intermédio de Josué, filho de Num” (1 Reis 16:34).
Aquela muralha representava a divisão dos povos. Pra isso servem os muros. Sejam muros de concreto, como os que estão sendo erguidos ao redor de algumas favelas cariocas, ou sejam muros ideológicos, religiosos, sociais, nacionalistas, etc.
Tão logo os muros de Jericó vieram a baixo, Josué, pelo Espírito de Deus, pronunciou uma maldição:
“Maldito diante do Senhor seja o homem que se levantar e reedificar esta cidade de Jericó: Com a perda do seu primogênito a fundará, e com a perda do seu filho mais novo lhe colocará as portas” (Js.6:26).
Séculos depois, com a chancela de Acabe, Hiel pôs a mão na massa, e reconstruiu Jericó. Conforme a palavra de Josué, Hiel perdeu seu primogênito assim que lançou os fundamentos da cidade, e perdeu seu caçula quando assentou suas portas.
Agora, Jesus, o Unigênito de Deus, resolve dirigir-Se àquela cidade cujos muros não deveriam jamais ser reconstruídos. Ao atender Bartimeu do lado de fora dos muros, e Zaqueu do lado de dentro, Jesus parece indicar que simplesmente ignora a nefasta obra creditada a Hiel. Para Jesus, aqueles muros não existem.
O Unigênito de Deus não reconhece qualquer separação entre os homens. Ele transita livremente entre todas as camadas. As fronteiras não passam de constructos humanos e políticos.
Talvez alguém diga que Deus pegou pesado com Hiel, ceifando a vida de seu primogênito e de seu caçula, só porque se atreveu a reconstruir as muralhas. Quem pensa assim não parou pra considerar o custo envolvido na demolição dos muros que separavam os homens de Deus e uns dos outros. Reconstruir aqueles muros custou a vida do primogênito e do caçula de Hiel. Mas derrubar os muros que nos separavam de Deus e de nossos semelhantes custou a vida do Unigênito de Deus.
Veja o que Paulo diz sobre isso:
“Mas agora em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, já pelo sangue de Cristo chegastes perto. Pois ele é a nossa paz, o qual de ambos os povos fez um, e destruiu a parede de separação, a barreira de inimizade que estava no meio, desfazendo na sua carne a lei dos mandamentos, que consistia em ordenanças, para criar em si mesmo dos dois um novo homem, fazendo a paz, e pela cruz reconciliar ambos com Deus em um só corpo, matando com ela a inimizade” (Ef. 2: 13-16).
Resumindo: pela cruz de Cristo, todos os muros ruíram. Jericó representa uma sociedade construída sobre o preconceito racial, social, religioso, sexual, cultural. Compete aos cristãos como expressão do Corpo de Cristo transitar livremente entre os povos, ignorando qualquer que seja o muro que os separe. Em Cristo a humanidade foi reunificada. “Desta forma”, conclui Paulo, “não há judeu nem grego (acabou a distinção nacionalista e cultural), nem servo nem livre (distinção social), não há macho nem fêmea (distinção sexista), pois todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gl.3:28). A Igreja é, por assim dizer, a nova sociedade humana em estado embrionário.
O problema é que em vez de investir pesado neste revolucionário e subversivo conceito, a igreja preferiu alienar-se da sociedade e investir seu tempo e recursos na construção de novos muros, e na reconstrução dos que já foram derrubados.
Serve-nos como advertência as sábias palavras do apóstolo dos gentios: “Se torno a edificar aquilo que destruí, constituo-me a mim mesmo transgressor” (Gl. 2:18).
Cristo continua a fazer pouco caso dos muros que reconstruímos. Porém, não deixará impune aquele que se atrever a reconstruir o que Lhe custou tão caro destruir.
Não temos o direito de costurar o véu do templo! Mas é isso que fazemos quando objetivamos levantar igrejas que se ocupem exclusivamente com certas camadas sociais. Reconstruímos muros quando erguemos bandeiras e nos entrincheiramos contra qualquer seguimento da sociedade. Quando dividimos uma igreja por não aceitar nos submeter à autoridade que nos constituiu. Quando categorizamos os crentes em “primeira classe” (os que falam em línguas, ou os que vão ao “encontro”, ou participam das células, etc.) e os da “classe econômica” (que chamamos de “nominais”, por não participarem ativamente em nossos programas). Quando nos vemos no direito de dizer quem vai ou não para o céu. Quando privilegiamos uma nacionalidade (por exemplo, Israel), enquanto menosprezamos outra (exemplo: os palestinos). Quando contamos piadinhas envolvendo a diferença racial. Enfim, não falta material disponível para reconstruirmos o que Deus destruiu com Seu Cetro de Justiça.
Trabalhemos, não na reconstrução de velhos muros, mas na edificação de uma nova sociedade, cujo fundamento seja o amor revelado em Cristo Jesus. Amor que acolheu prostitutas no passado, e que pode acolher homossexuais hoje (ainda que não endossemos qualquer tipo de promiscuidade, inclusive a praticada por heterossexuais). Amor que acolheu os excluídos de então, e continua a fazê-lo hoje. Que une oprimidos e opressores de um mesmo lado, jogando por terra aquilo que os separava, reconciliando as classes sociais sob a égide da justiça, da verdade e do amor. Afinal, quem ama Bartimeu, também ama Zaqueu. E o desejo de Cristo é que se reencontrem numa Jericó sem muros, sem capas que sirvam para esmolar, ou árvores que sirvam para camuflar.
E não digam que pareço estar em cima do muro em se tratando de alguns temas polêmicos. Não! Absolutamente. Pelo simples fato de não haver mais muro. Sou pela verdade, seguida em amor.
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