quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Diante das Provas e Perseguições...

Em 333 a.C., Alexandre da Macedónia derrotou Dario III, rei dos Persas, na batalha de Issos (Síria). A Palestina, até aí sob o domínio dos Persas, ficou integrada no império de Alexandre. 

Alexandre procurou impor a ideia da "oikouméne", quer dizer, a ideia de um mundo em que todos os homens eram uma só família, unidos sob uma só lei divina, em que todos os cidadãos do império eram cidadãos de uma mesma cidade e comungavam dos mesmos valores e da mesma cultura.

Quando Alexandre morreu, em 323 a.C., o império foi disputado pelos seus generais. A Palestina foi, então, objeto de disputa entre os ptolomeus, que ocupavam o Egito, e os selêucidas, que dominavam a Síria e a Mesopotâmia. Num primeiro momento, os ptolomeus asseguraram o domínio da Palestina e da Síria; mas o selêucida Antíoco III, aliado com Filipe V da Macedónia, acabou por vencer os ptolomeus (batalha das fontes do Jordão, ano 200 a.C.) e por conquistar o domínio da Palestina. 

Se o período ptolomaico tinha sido uma época de relativa benevolência para com a cultura judaica, a situação mudou radicalmente durante o reinado do selêucida Antíoco IV Epífanes (174-164 a.C.). Este rei, interessado em impor a cultura helénica em todo o seu império, praticou uma política de intolerância para com a cultura e a religião judaicas. A perseguição foi dura e as marcas da intolerância selêucida provocaram feridas muito graves no universo social e religioso judaico. Se muitos judeus renegaram a sua fé e assumiram os valores helénicos, muitos outros resistiram, defenderam a sua identidade cultural e religiosa. Uns optaram abertamente pela insurreição armada (como foi o caso de Judas Macabeu e dos seus heróicos seguidores); outros, contudo, optaram por fazer frente à prepotência dos reis helénicos com a sua palavra e os seus escritos. 

O Livro de Daniel surge neste contexto. O seu autor é um judeu fiel à cultura e aos valores religiosos dos seus antepassados, interessado em defender a sua cultura e a sua religião, apostado em mostrar aos seus concidadãos que a fidelidade aos valores tradicionais seria recompensada por Jahwéh com a vitória sobre os inimigos. Contando a história de um tal Daniel, um judeu exilado na Babilónia, que soube manter a sua fé num ambiente adverso de perseguição, o autor do Livro de Daniel pede aos seus concidadãos que não se deixem vencer pela perseguição de Antíoco IV Epífanes e que se mantenham fiéis à religião e aos valores dos seus pais. 

Neste livro, o autor garante-lhes que Deus está do lado do seu Povo e que recompensará a sua fidelidade à Lei e aos mandamentos. Estamos na segunda metade do séc. II a.C., pouco antes do desaparecimento de cena de Antíoco (que aconteceu em 164 a.C.). 

Com o livro de Daniel, inaugura-se a literatura apocalíptica. Num tempo de perseguição, o autor pretende - servindo-se de um género literário que recorre, frequentemente, a símbolos e a uma linguagem cifrada - restaurar a esperança e assegurar ao seu Povo a vitória de Deus e dos seus fiéis sobre os opressores. 

Aos cristãos perseguidos, o autor do livro anuncia a chegada iminente do tempo da intervenção salvadora de Deus para salvar o Povo fiel. Nesse sentido, ele refere-se à intervenção de "Miguel", o chefe do exército celestial, que Deus enviará para castigar os perseguidores e para proteger os santos. No imaginário religioso judaico, "Miguel" é concebido como um espírito celeste (uma espécie de anjo protetor) que vela pelo Povo de Deus e que, por mandato divino, opera a libertação dos justos perseguidos, cujo nome está inscrito "no livro da vida". 

Essa intervenção iminente de Deus não atingirá, na perspectiva do nosso autor, somente aqueles que ainda caminham na história; mas Deus irá, também, ressuscitar os que já morreram, a fim de lhes dar o prémio pela sua vida de fidelidade ou o castigo pelas maldades que praticaram. Em concreto, o autor estará a falar daquilo que costumamos chamar "o fim do mundo?". O que ele está a falar é de uma intervenção de Deus que porá fim ao mundo da injustiça, da opressão, da prepotência, de morte e que iniciará um mundo novo, de justiça, de felicidade, de paz, de vida verdadeira. 

Aqueles que, apesar da perseguição e do sofrimento, se mantiveram fiéis a Deus e aos seus valores, esses estão destinados à "vida eterna". O autor deste texto não explica diretamente em que consistirá essa "vida eterna"; mas os símbolos utilizados ("resplandecerão como a luminosidade do firmamento"; "brilharão como as estrelas com um esplendor eterno", evocam a transfiguração dos ressuscitados. Essa vida nova que os espera não será uma vida semelhante à do mundo presente, mas será uma vida transfigurada. 

É esta a esperança que deve sustentar os justos, chamados a permanecerem fiéis a Deus, apesar da perseguição e da prova. 

A sua vida não é - garante-nos o nosso autor - sem sentido e não está condenada ao fracasso; mas a sua constância e fidelidade serão recompensadas com a vida eterna. Embora sem dados muito concretos e sem definições muito claras, começa aqui a esboçar-se a teologia da ressurreição. 

A mensagem de esperança destinava-se a animar os crentes que sofriam a perseguição numa época e num contexto particulares. No entanto, é uma mensagem válida para os crentes de todas as épocas e lugares. A "perseguição" por causa da fidelidade aos valores em que acreditamos é uma realidade que todos conhecemos e que faz parte da nossa existência comprometida. Hoje, essa "perseguição" nem sempre é sangrenta; manifesta-se, muitas vezes, em atitudes de marginalização ou de rejeição, em ditos humilhantes, em atitudes provocatórias, na colagem de "rótulos" ("conservadores", "atrasados", "fora de moda"), em julgamentos apressados e injustos, em preconceitos e oposições... Contudo, é sempre uma realidade que faz sofrer o Povo de Deus. Este texto garante-nos que Deus nunca abandona o seu Povo em marcha pela história e que a vitória final será daqueles que se mantiverem fiéis às propostas e aos caminhos de Deus. Esta certeza constitui um "capital de esperança" que deve animar a nossa caminhada diária pelo mundo. 

O Livro de Daniel põe, também, a questão da fidelidade aos valores verdadeiramente importantes, que estão para além das conveniências políticas e sociais, ou das imposições e perspectivas de quem dita a moda... Daniel, o personagem central do livro, é uma figura interpelante, que nos convida a não transigirmos com os valores efémeros, sobretudo quando eles põem em causa os valores essenciais. O cristão não é uma "cana agitada pelo vento" que, por interesse ou por cálculo, esquece os valores e as exigências fundamentais da sua fé; mas é "profeta" que, em permanente diálogo com o mundo e sem se alhear do mundo, procura dar testemunho dos valores perenes, dos valores de Deus. 

A certeza da presença de Deus a acompanhar a caminhada dos crentes e a convicção de que a vitória final será de Deus e dos seus fiéis, permite-nos olhar a história da humanidade com confiança e esperança. O cristão não pode ser, portanto, um "profeta da desgraça", que tem permanentemente uma perspectiva negra da história e que olha o mundo com azedume e pessimismo; mas tem de ser uma pessoa alegre e confiante, que olha para o futuro com serenidade e esperança, pois sabe que, presidindo à história dos homens, está esse Deus que protege, que cuida e que ama cada um dos seus filhos. 

A vida eterna é assegurada àqueles que procuram viver na fidelidade aos valores de Deus. A certeza de que a vida não acaba na morte liberta-nos do medo e dá-nos a coragem do compromisso. Podemos, serenamente, enfrentar neste mundo as forças da opressão e da morte, porque sabemos que elas não conseguirão derrotar-nos: no final da nossa caminhada por este mundo, está sempre a vida eterna e verdadeira, que Deus reserva para os que estão "Inscritos no livro da vida".

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