quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Lixívia para a lingua de nossos oradores

As poucas árvores relativamente mais próximas do buraco, duas ou três, davam guarida a uma considerável parte de gente, homens, mulheres e grávidas rendidos ao poder da sombra perante um sol banhado de calor e humidade. Havia mesmo uns que, ainda assim, levavam a mão à testa em jeito de pala. Mas, como é típico de actos fúnebres, há sempre aqueles mais directamente afectados, ou ao menos tolerantes ao clima, aqui incluso o leitor da biografia.
11h00 da manhã. Sábado. Cemitério da Catumbela. Na tábua, vítima de doença, a Roséria, prima-irmã de primos-irmãos meus da parte de pai. Uma doença que, de tão apressada, mais não precisou do que meia semana para retirá-la quieta, logo ela que vinha perseverando no comércio por conta própria. Teria partido para a China na próxima segunda-feira, se…
O elogio fúnebre não foi longo nem curto, teve o tempo, as pausas e ênfases suficientes. Também, verdade seja dita, andava a plateia espalhada pelas árvores e arbustos do campo santo, como já dito, em busca de sombra. Para não dar muitas voltas, diria que quase todo o mundo conhecia a mana Roséria, e pouco ou nada de extraordinário acrescentaria a narração às memórias do convívio com ela.
A aparente obviedade, entretanto, se quebra quando um homem alto, bem nutrido, cabelo em escovinha, camisa preta e gravata começou a falar, sem que conseguíssemos notar, de onde nos acoitávamos, se lhe fora concedida a palavra. Deu-se a identificar como obreiro da Igreja Universal do Reino de Deus, quer pelo sotaque mecânico abrasileirado, quer pela tendência do verbo. Os cochichos não demoraram, pois não foi vista no óbito a IURD, durante as duas noites que antecederam o enterro, para cânticos, entre outras coisas típicas nestas ocasiões.
E o orador, que suava o mesmo amoníaco de gente honesta, teimava em desumanizar a morte, atribuindo-lhe uma causalidade baseada na intriga. “Se calhar, entre nós há pessoas que sempre desejaram a morte da nossa irmã”, vomitou. Depois disse qualquer coisa como Deus dá descanso às suas criaturas invejadas cá na Terra. Já não é o criador da vida, e como tal da morte, mas um ser que só dá o bem (de preferência material). A morte, como quis fazer crer, não é natural mas uma consequência da maldade dos homens para com outros, o olho grande e etc. Ora, e aqui uma dúvida, se o mal já está identificado, e tendo em conta que o homem é insignificante perante Deus, por que não desafiar este último a erradicar a inveja?
Era mais fácil esperar por palavras de consolo e esperança (no que também não seria o primeiro nem o último) do que justificações e conjecturas que podem, em meios menos escolarizados, incitar rancores desnecessários. Não nos esqueçamos que o africano, Bantu para não arriscar tanto na generalização, tem uma dificuldade estrutural de aceitar a morte, pelo que recorre à mitologia para a explicar. Até porque, de tão complexas que são as relações humanas, não faltarão coincidências que poderiam ser mais ou menos relacionadas com a especulação do obreiro. Daí à justiça por mão própria não é longo o caminho.
Qualquer dia, na senda da Universal e Mundial, virá alguém ensinar que a fecundação nunca foi do sémen com o ovário mas apenas fruto do milagre. E de tão polissémica a bíblia, até eles alertam sobre o Mateus 24:24.
Para terminar, embora tenha parado de orar há já um bom tempo, volto a fazê-lo hoje: Senhor, dai-nos, que é hora, lixívia para a língua dos nossos oradores.

Gociante Patissa, 19 Março 2011

Um comentário:

  1. caro Fratermaurício, muito grato pela visita e divulgação. Volte mais vezes lá e será muito bem recebido.
    Abraço angolano
    Patissa

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