terça-feira, 25 de março de 2025

Um Salto Para Deus, Um Salto No Escuro...

A morte é esse instante definitivo, um corte brusco na linha do tempo individual. Um momento que, paradoxalmente, pode ser tanto o fim quanto o começo, dependendo da perspectiva. Para quem parte, é uma transição instantânea; para quem fica, pode ser um processo dilatado de ausência e saudade.

A ideia de que tudo acontece num átimo nos lembra que a vida é frágil e transitória. Um corpo que antes respirava, se movia, sentia e pensava, subitamente se desliga. E então? O que resta? Para uns, apenas o silêncio e o fim absoluto. Para outros, a continuidade em outra esfera, um despertar para algo maior.

A morte também transforma aqueles que testemunham sua passagem. Numa fração de segundos, os vivos se tornam enlutados, as rotinas se quebram, as certezas se abalam. A ausência de alguém pode ser um eco interminável, ressoando nas lembranças, nos objetos deixados, nas palavras não ditas.

O instante da morte é um ponto fixo e inevitável, mas o impacto que ela gera reverbera por muito tempo. E, talvez, seja justamente essa reverberação — na memória, no legado, naquilo que inspiramos nos outros — que nos mantém vivos além do instante final.

É curioso como a vida inteira se desenrola em um fluxo contínuo, mas a morte acontece num átimo. Um piscar de olhos, um suspiro, um silêncio — e pronto. Aquele que estava, já não está.

Sempre me pergunto sobre esse instante exato da travessia. Será que há um aviso? Um frio que sobe pela espinha, um clarão, um último pensamento? Ou será apenas um corte, como um filme que se encerra abruptamente?

Os que ficam, quase nunca percebem a exatidão do momento. Segundos antes, a pessoa ainda é. Segundos depois, é lembrança. Talvez seja esse o grande espanto da morte: não sua chegada em si, mas sua rapidez. Uma presença que vira ausência sem cerimônia, sem anúncio.

E, no entanto, há algo de misterioso nesse instante final. Porque, apesar da ausência, há uma presença que persiste. No cheiro que fica no travesseiro, na xícara esquecida sobre a mesa, no rastro de passos que o tempo demora a apagar.

Talvez, para quem parte, seja apenas uma passagem, como quem atravessa uma porta. Mas para quem fica, a porta se fecha devagar, com um ranger longo e demorado.

E é nesse ranger da porta que mora o luto. Ele não chega de súbito, como a morte, mas se instala aos poucos, preenchendo os espaços vazios que a presença ocupava. É na cadeira que ninguém mais puxa, no número de telefone que os dedos hesitam em apagar, na roupa que ainda guarda um cheiro familiar.

Os dias seguem, mas o instante da travessia fica suspenso no ar, como se o tempo, em algum lugar, ainda estivesse preso naquele último olhar, naquele último toque, naquele último respiro. A gente aprende a conviver com isso, mas nunca exatamente supera. Porque a morte é esse paradoxo: acontece num segundo, mas dura uma eternidade dentro de nós.

E o que dizer de quem partiu? Será que, do outro lado, há mesmo um despertar? Será que o instante da travessia é como acordar de um sonho, ou como mergulhar no desconhecido sem nunca emergir? Mistério. Só sabemos que, para nós, resta o eco, o silêncio cheio de palavras não ditas, o vazio que, de algum jeito, continua cheio de significados.

Talvez seja por isso que falamos tanto da morte — para tentar preencher essa lacuna, para dar forma ao que não compreendemos. Mas, no fim, talvez seja como aquela porta que vai ao fechar: não importa o quanto tentamos segurá-la aberta, em algum momento ela se fecha por completo. O que resta, então, é o que aprendemos a carregar do outro lado dela.

Como cristão, cremos que a morte não é um fim, mas uma passagem. O instante da travessia, por mais misterioso que seja, não leva ao nada, mas a um reencontro. “Na casa de meu Pai há muitas moradas” (João 14:2), e essa promessa ilumina o desconhecido.

Se a vida é um sopro, a eternidade é o verdadeiro despertar.
O corpo descansa, mas a alma desperta para uma nova realidade, mais plena, mais verdadeira. A travessia pode parecer um mergulho, mas não no vazio — é um salto para os braços de Deus.

Para quem parte, talvez seja como abrir os olhos e ver, finalmente, com clareza. Como se tudo o que aqui era sombra e a incerteza se tornasse luz. Para quem fica, resta o silêncio, mas um silêncio cheio de esperança, pois a ausência não é definitiva.

Cristo venceu a morte, e é nessa vitória que o coração encontra consolo. O eco da saudade ainda ressoa, mas junto dele, ressoa também a certeza da ressurreição. A porta da travessia se fecha aqui, mas do outro lado, uma nova se abre — e ali, não há mais dor, nem lágrimas, apenas o eterno abraço do Pai.

E se do outro lado há esse despertar, então a morte não é um adeus, mas um "até logo". A dor da separação é real, a saudade aperta, mas não é uma despedida definitiva. É apenas uma pausa, uma espera. Quem parte, parte primeiro, mas não para sempre.

No instante da travessia, talvez o coração se aquiete ao ouvir a voz d'Aquele que disse: “Vinde a mim, todos os que estão cansados ​​e oprimidos, e eu vos aliviarei” (Mateus 11:28). E o intervalo chega, o peso da carne se desfaz, e o espírito, enfim, descansa.

Para nós que ficamos, a ausência se preenche de lembranças e orações. Não falamos mais com os olhos, mas com a alma. Não ouvimos mais a voz, mas sentimos a presença na fé. E, com o tempo, aprendemos que o amor não se encerra com a morte, pois “o amor nunca perece” (1 Coríntios 13:8).

Então seguimos, carregando no peito a certeza de que, quando a nossa hora chegar, a travessia não será um salto no escuro, mas um caminho já iluminado. Haverá um reencontro, e as lágrimas derramadas aqui serão enxugadas lá. Porque se há uma promessa que nos sustenta, é esta: “Eu sou a ressuscitar e a vida; quem crê em mim, ainda que morra, viverá” (João 11:25).

O velho José sentiu o corpo ceder. Não havia dor, apenas um cansaço profundo, como se a vida se recolhesse dentro dele, preparando-se para partir.
O quarto estava na penumbra, e o mundo ao redor começava a se afastar, como uma maré que recua lentamente.

Ele fechou os olhos e percebeu que algo mudava. Primeiro, foi o silêncio. Não o silêncio comum, mas um silêncio absoluto, como se todas as coisas tivessem prendido a respiração. O peso do corpo desaparecia um pouco, e então veio a leveza — uma sensação de desprendimento, como se estivesse se desfazendo das amarras do tempo.

Por um instante, tudo ficou suspenso. O relógio na parede parou de fazer sentido, e a linha que separava o antes e o depois simplesmente desapareceu. Foi então que a luz surgiu. Não era ofuscante, nem agressivo, mas acolhedora, como um abraço que se sente antes mesmo de ser dado. José não viu um túnel, nem sombras, nem dúvidas. Apenas a certeza de que estava indo para casa.

As memórias não se apagaram, mas se reorganizaram, como peças encaixando-se num mosaico perfeito. Ele viu os dias da infância, as tardes em que correu descalço pelo quintal, o cheiro do pão recém-saído do forno da mãe. Lembrou-se das mãos calejadas pelo trabalho, das noites de oração, das lágrimas e dos sorrisos. Tudo fazia sentido agora, tudo se encaixava.

A dor do mundo ficou para trás, junto com os medos e as preocupações. A carne, frágil e limitada, não o segurava mais. O tempo já não pesava sobre ele. E então veio a paz — uma paz diferente de qualquer outra que já sentisse, uma paz que preenchia tudo.

O velho José entendeu, enfim, que havia chegado. O véu que antes o separava da eternidade se rasgara, e do outro lado, a luz o esperava. Sem pressa, sem medo, ele atravessou. E então, tudo começou de novo.

O que veio depois foi como um amanhecer sem pressa. Não havia mais peso, nem sombras, apenas uma plenitude que José nunca experimentou antes. Ele não caminhava, mas avançava, guiado por algo que não via, mas conhecia. Não havia chão sob seus pés, mas também não havia queda. O tempo já não media os instantes, e a eternidade não parecia distante — era agora.

As lembranças terrenas não se apagaram, mas estavam livres das dores que as acompanhavam. Ele se lembrou das despedidas, mas agora sem tristeza, pois compreendia que nada realmente se perderia. O amor que compartilhara, as orações que fizera, os abraços que dera — tudo isso o acompanhava, mais real do que nunca.

Diante dele, um horizonte se abriu. Mas não era um horizonte como os da terra, onde o céu encontra o mar ou as montanhas abraçam as nuvens. Era um espaço sem fim, um lugar onde a luz não tinha fonte, porque ela simplesmente era. Uma luz viva, que não apenas iluminava, mas envolvia, preenchia e aquecia.

José sentiu um reconhecimento profundo, como se sempre tivesse tido pertencido naquele lugar, como se sua alma, em cada oração feita em vida, já teve sussurrado esse nome, mesmo sem conhecê-lo. Não era uma chegada; era um retorno.

E então, o silêncio se rompeu. Mas não com palavras, porque todas as palavras eram desnecessárias. Era uma saudação feita de presença, um acolhimento que falava direto ao espírito. O amor era palpável, fluía como um rio que nunca seca, e José entendeu: este era o lar prometido, a morada preparada antes do tempo.

Na terra, um corpo repousava, os olhos fechados, as mãos serenas sobre o peito. As lágrimas dos que ficaram caíam, as preces subiam, mas a alma já não pertencia àquele lugar. A travessia se completara. O velho José, agora novo, seguia adiante. E então, sem medo, sem dor, sem saudade, ele viveu.

A eternidade se desenrolava diante dele como um horizonte sem fim, mas não havia pressa. O tempo não o empurrava mais, nem o fazia olhar para trás. Ele apenas era, presente em cada instante, sem necessidade de medir ou contar.

E então José descobriu que não estava sozinho. Não porque viu rostos familiares ou ouviu vozes conhecidas, mas porque sentiu. O amor que permeava tudo era também comunhão. Era como se cada alma que já fazia essa travessia estivesse ali, não em forma de corpo, mas em essência — vibrando, existindo, compartilhando da mesma alegria serena.

A lembrança de sua vida na terra não se desfez, mas adquiriu uma clareza nova. Ele viu momentos antes perdidos no tempo: os dias comuns, os gestos simples, os sacrifícios silenciosos — tudo que parecia pequeno agora brilhava como se tivesse sido tecido com fios de luz. O bem que fez, as palavras de esperança que um dia ofertou a alguém, os sorrisos que deu mesmo nos dias difíceis — nada fora esquecido. Cada ato de amor permanecia, como se tivesse sido guardado em um livro secreto, agora aberto diante dele.

José compreendeu, então, que cada passo de sua jornada o havia levado para esse momento. Cada oração sussurrada no silêncio, cada lágrima derramada em fé, cada prova superada com confiança no Alto — tudo isso tinha sido um caminho. E agora, diante da vastidão infinita da eternidade, percebeu que a travessia não era um fim, mas um começo.

A luz à sua frente se intensificou, não como um clarão que ofusca, mas como um abraço que acolhe. Ele não precisa perguntar para onde ia. Ele já sabia. E então, sem hesitar, entregou-se por completo.

E pela primeira vez, desde o dia em que nasceu, José sentiu o que era viver plenamente.

A alegria veio como um vento suave, como a primeira brisa da manhã depois de uma noite longa e cansativa. José não sentia mais o peso dos anos, nem as dores que antes lhe marcavam os dias. O corpo, que já não era carne, era agora pura leveza, sem limites, sem cansaço. Movia-se sem esforço, sem firmeza, como se tivesse sido libertado de uma armadura invisível que o prendia à terra.

Lembrou-se do tempo em que os joelhos doíam ao subir escadas, das noites mal dormidas por causa do peso da idade, da respiração que antes era curta e sofrida. Agora, tudo parecia tão distante, tão pequeno diante da grandeza do que experimentava. Não havia mais limitações. Não havia mais peso. Ele era livre.

A alegria crescia dentro dele, mas não era uma explosão eufórica. Era algo profundo, sereno, como se cada parte de seu ser estivesse em harmonia com algo muito maior. A existência não era mais uma luta, mas um fluxo suave, uma dança sem esforço na vastidão da eternidade.

Seus braços já não precisavam se erguer para alcançar, pois tudo estava ao seu redor. Seus olhos já não precisavam se apertar para enxergar, pois tudo era claro. Ele experimentou a plenitude do ser, como se, pela primeira vez, estivesse realmente inteiro.

E então José sorriu. Um sorriso verdadeiro, sem marcas de preocupação, sem sombras do passado. Apenas o puro contentamento de existir na luz, de ser parte de algo eterno e perfeito.

Ele viu que a dor, a limitação, o sofrimento — tudo isso tinha sido apenas parte da jornada. Mas agora, tudo isso ficou escondido para trás. Só restava a paz. Só restava a leveza.

E José, enfim, voou.

José nunca imaginou que voar seria assim. Não como um pássaro que luta contra o vento, nem como um homem que sonha tocar o céu, mas como alguém que, enfim, encontrou seu verdadeiro estado. Era um voo sem esforço, sem medo, sem destino traçado, porque agora o próprio céu era seu lar.

Ele se lembrou das vezes em que olhou para o alto, em suas longas tardes de reflexão, desejando compreender o mistério do infinito. Quantas vezes suspirou, sentindo-se pequeno diante da vastidão do firmamento? Quantas vezes desejou superar as barreiras do corpo, romper as correntes do tempo, libertar-se do peso da matéria? Agora, tudo isso ficava para trás.

Ele se move como a brisa, como um raio de luz atravessando um campo aberto. Não havia direção fixa, nem limites a serem quebrados. A liberdade não era um movimento, mas um estado. E ele, que por tanto tempo caminhou com os pés presos à terra, agora flutuava na eternidade, como quem retorna ao seu verdadeiro lar.

Lá embaixo, no mundo que um dia chamou de casa, a vida seguia. Lágrimas eram derramadas, vozes murmuravam preces, velas eram acesas. Mas José já não sentia saudade, pois entendia que tudo era passageiro. Ele sabia que um dia, todos aqueles que amavam fariam a mesma travessia e sentiriam a mesma leveza.

Agora, ele não apenas existia — ele era. Ele era parte da luz, parte da paz, parte do eterno. O voo, tão esperado, tão desejado, tão sonhado, enfim se tornara real.

E José, sem precisar olhar para trás, apenas seguiu.

Para alguns, morrer é um salto no escuro — um mistério insondável, um mergulho sem fundo, um voo sem garantia de pouso. Para outros, é um salto para os braços de Deus — um retorno ao lar, um despertar para a verdadeira vida, um reencontro com o Criador que sempre esteve ali, esperando, chamando, amando.

A morte parece um fim, mas é apenas o instante da travessia, a última fronteira entre o tempo e a eternidade. Para quem vive com fé, não há medo, apenas entrega. Como alguém que se lança ao mar, confiando que as ondas o sustentarão, ou como uma criança que pula nos braços do pai, sem hesitação, porque sabe que será acolhida.

Mas e para quem teme? Para quem vê a morte como um salto no desconhecido, um abismo sem respostas? O medo da escuridão só existe porque não enxergamos o que há do outro lado. Mas se a vida foi construída sobre amor, sobre esperança, sobre fé, então a morte não pode ser um fim trágico. Ela é apenas a porta que se abre para um novo começo, o instante em que tudo se alinha, tudo se explica, tudo se cumpre.

A morte morre quando a alma desperta para a eternidade.

Morrer é dar um salto. Para alguns, um salto no escuro, sem certezas, sem garantias. Para outros, um salto para os braços de Deus, como um filho que corre confiante para o abraço do Pai.

O instante da travessia é um mistério que nenhum olhar humano pode capturar. A vida, que se sustentou por anos a fio em um corpo frágil, desfaz-se em um átimo. O coração para, os pulmões se aquietam, e então? O que acontece? O que vem depois? Para quem fica, resta o silêncio da ausência, o vazio da despedida. Mas para quem parte?

Se a morte fosse apenas o fim, por que nossa alma anseia tanto pelo infinito? Se fôssemos feitos apenas para a matéria, por que o espírito insiste em olhar para além?
Talvez porque dentro de nós, bem no fundo, saibamos que a vida não pode ser só isso. Que há algo mais. Que a última batida do coração não é o ponto final, mas apenas a vírgula antes de um novo começo.

Morrer para quem crê não é cair no vazio. É finalmente voar. É libertar-se das amarras do tempo e da dor. É um salto, sim, mas um salto para dentro da eternidade.

E para aqueles que entregam a vida nas mãos de Deus, não há escuridão nesse salto. Há luz. Há paz. Há um lar esperando.

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