sábado, 15 de outubro de 2022

Divinamente Humano

Nenhum outro ser recebeu de Deus o fôlego da vida como o homem. O próprio Deus soprou do Seu Espírito no homem (Gn 2.7) e quando este fôlego é retirado, ele deixa de existir na Terra e o corpo volta ao pó.

O homem foi criado na Terra, mas planejado para refletir a glória do Seu Criador que vive nos Céus. Foi divina e especialmente constituído sob leis espirituais.

O pecado de Adão e Eva quebrou a Lei de Deus e trouxe separação entre Deus e o homem. O pecado gerou morte e a punição registrada em Gênesis 4 revela a reação da santidade de Deus diante da violação de Suas leis eternas. O homem criado à imagem e semelhança de Deus, perdeu a Glória do Seu Criador, santo e eterno, e passou a ser identificado apenas como ser humano, húmus, barro, terra.

O homem continuou sendo um espírito vivo, porém passou a viver limitado pelo que é material e terreno. Sem a glória de Deus (Rm 3.23), guiado por sua natureza húmus, o homem busca satisfação no que é puramente terreno e não consegue refletir, nem viver sua humanidade à luz da eternidade.

O divino deixou o humano.

O homem perdeu a razão da sua existência e passou a sofrer pela ausência da Glória sendo conduzido pela sua natureza decaída a buscas incessantes de prazer, fama, posses, poder...

Glória! Esplendor visível do caráter perfeito de Deus. O homem foi criado para Glória de Deus! O pecado deixou uma falta, sofremos a necessidade da luz ofuscante da perfeição divina. Necessitamos da Glória de Deus!

Pela desobediência a Deus o homem tornou-se vulnerável às ciladas do Diabo. Até então o homem não havia experimentado o que é mal. Ao desobedecer às leis divinas, a iniquidade entrou na raça humana e o ser que Deus formou para Sua glória passou também a ser influenciado pelo que vem do maligno. O ser espiritual passou a ser apenas humano.

O próprio Deus avisara: Certamente morrerás!

Não somente a morte física, mas principalmente a separação eterna de Deus - a verdadeira morte. Morto para glória de Deus, é conduzido pela sua natureza a satisfazer-se e achar-se completo com o que é passageiro e temporal. Pior, na maioria, com o que é pecaminoso. E assim muitas coisas passam como aceitas e permitidas aos olhos humanos quando na verdade ferem a santidade do Eterno, de quem o homem foi feito originalmente à semelhança.

Não há como negar que o ser humano possui muitas qualidades na sua humanidade que não estão necessariamente relacionadas ao pecado. Mas o homem sem a glória de Deus, facilmente transforma aquilo que lhe dá prazer em sua prioridade, seu deus. O deus comida, deus-sexo, deus-lazer, deus-dinheiro, deus-esporte etc. Sinais do homem carente da glória de Deus.

Desde o Éden, Deus prometeu a provisão para que o homem voltasse ao seu plano original. Ele disse que da descendência da mulher viria aquele que esmagaria a cabeça da serpente (Gênesis 3.15). E Ele veio! Jesus, o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, com seu sacrifício na cruz ofereceu o resgate a todos que desejam que o divino volte ao que é puramente humano. Cabe ao homem decidir continuar sendo apenas humano ou receber o dom de Deus para salvação e tornar-se Filho de Deus, Templo do Espírito Santo.

É certo que toda a plenitude da divindade será experimentada quando nos livrarmos deste corpo mortal. Mas enquanto vivos na Terra, se nascidos de novo, gerados pela semente incorruptível e santa de Cristo, nossa humanidade deve estar sujeita ao que é divino. Isto implica em andar em espírito para não cumprir a vontade da carne, da natureza humana decaída.

Por que muitos que se dizem filhos de Deus cantam, pregam, frequentam templos, mas mesmo assim vivem uma vida apenas húmus, terrena? Pensam e priorizam o que é da Terra?

Que vivamos a nossa humanidade, usufruindo dos prazeres saudáveis da vida, porém cheios do que é divino. Humanos enquanto existindo nesta dimensão terrena, mas dominados, guiados pelo Espírito Santo, pois somente assim podemos afirmar com convicção que somos filhos de Deus (Rm 8.14). Quem é filho de Deus, tem a sua humanidade sujeita ao padrão de Deus. O que é terreno é dominado pelo que é divino.

A luta entre a natureza caída e o espírito ocorrerá até nossa morte física, mas até lá o padrão de Deus para seus filhos continua sendo a Sua Glória.

Deve-se viver o que é humano com o domínio do que é eterno. Deus conhece nossa humanidade, mas nos chama à Sua divindade. Mateus 5.48 diz: Sede perfeitos, como é perfeito vosso Pai que está nos céus. Em Jesus, o Pai nos chama a sermos como Ele. É o chamado à nossa origem!

Quando começamos a meditar nestas verdades, podemos até ceder a pensamentos de que se trata de um padrão inatingível pelo ser humano e pensar em justificativas que argumentam nossa desobediência ou falta de disposição em renunciar o que é puramente humano e que nos afasta do Santo. Mas a providência divina foi tomada. O Espírito Santo vive em nós!

À medida que crucificamos a natureza terrena somos cheios da natureza divina!

Devemos nos separar dos valores pecaminosos deste mundo. Devemos crescer em direção à maturidade espiritual, sermos completos em Deus. O propósito de Deus é que nos superemos como humanos e elevemo-nos acima da mediocridade, amadurecendo em todas as áreas a fim de sermos como Ele é.

Deus é injusto em querer isto de nós? Absolutamente não! Não somos apenas humanos. Em Cristo tornamo-nos divinos, porque o Espírito Santo habita em nós. O acesso à glória de Deus nos foi restituído.

A questão é: o quanto tenho investido na minha espiritualidade? Será que não tenho dedicado mais tempo e esforço àquilo que é terreno?

Alguém já disse que o que alimentamos é o que se torna mais forte em nós. É importante analisar se temos alimentado equilibradamente todas as áreas do nosso ser: corpo, alma e espírito.

Será que não temos dado mais atenção ao corpo e a alma e alimentado o espírito com sobras? Todos sabem o que acontece com quem se alimenta com sobras...

Somos humanos sim, mas humanos regenerados. Nosso padrão de vida é o padrão do Espírito.

Experimentamos os prazeres na Terra que não ferem a santidade de Deus, conquistamos bens, conforto, lazer, entretenimento, mas nada disso tem prioridade em nossa vida.

Somos humanos, mas nossa humanidade é dominada pelo Espírito de Deus. Vivemos na Terra com alegria e prazer, mas certos de que este não é o nosso lar. Temos uma origem e um propósito: DEUS! Somos divinamente humanos!

Terra, a matéria prima dos humanos.

O desenvolvimento humano é como uma história de distanciamento, de alienação dos humanos de sua matéria prima - a terra. Nessa história, homens e mulheres alcançaram conquistas tecnológicas impressionantes. No entanto, a terra e o seu ciclo e ritmo natural de vida perderam em importância. O solo foi reduzido a um meio de produção, um recurso material comercializável, deixando de ter uma conotação de ser vivo. Se compararmos a nossa visão de mundo ocidental com as visões de mundo indígenas, vamos constatar concepções opostas:

Nós ocidentais falamos em natureza, os indígenas falam de mãe-terra; nós ocidentais consideramos o domínio da natureza como marco de desenvolvimento ao passo que povos indígenas consideram sua integração no todo da criação como marco de desenvolvimento.

Parece que quanto mais as sociedades se desenvolveram de suas origens tribais na direção de modernas sociedades de estado, tanto mais elas se distanciaram de sua ligação com a terra. Um exemplo disso é que nos países desenvolvidos há cada vez menos agricultores - fator quase alçado ao status de critério para medir desenvolvimento. Na política de desenvolvimento, por muitos anos, falou-se da contraposição de países agrários a países industrializados, para distinguir entre países subdesenvolvidos e países desenvolvidos. Na Alemanha, com 81 milhões de habitantes, menos de 400 mil lutam para sobreviver na agricultura. No Brasil, com 200 milhões, entrementes ainda se considera menos de 12 % de população rural como índice de subdesenvolvimento, enquanto na costa brasileira vão se multiplicando as grandes metrópoles. Em nossa Bíblia conservamos dois relatos da criação. Um deles espelha de muitos povos indígenas.

Por exemplo, para os aborígenes australianos a terra consiste no pó dos antepassados. Para eles não existe morte, apenas transformação.

O corpo humano se torna novamente terra, para servir de nutrição para as plantas que, por sua vez, possibilitam a respiração a outros seres vivos ou vira porco do mato para servir de alimento para netos e bisnetos.

À semelhança de povos indígenas de outros continentes, eles se autodenominam "os verdadeiros humanos" para distinguir-se de nós outros ocidentais a quem denominam de "os humanos modificados". O que todos eles creem coincide conceitualmente com o segundo relato bíblico da criação, no qual Deus forma um boneco de terra, para em seguida insuflar-lhe o sopro da vida. A terra do boneco não é qualquer tipo de solo. É adamah, terra agricultável, terra de plantio. Adão é o terráqueo, feito de adamah, aqueles 12 a 15 cm de solo fértil e vivo. Os humanos, portanto, são partes dessa camada de húmus animadas pelo sopro de Deus. Assim Adam tem uma relação imediata com a adamah. Para permanecer humano, essa relação não pode ser perturbada e muito menos interrompida. O vínculo com o sopro de Deus lhe atribui a função de elo de ligação entre Deus e terra. Aliás, em geral, esquecemos que também os animais são formados da mesma adamah (Gênesis 2,19).

Isso explica, porque nas cosmovisões indígenas há trocas muito naturais entre humanos e animais, e que eles entendem os animais apenas como corporificações diversas da essência humana.

O vínculo de terra e sopro divino constitui a humanidade. Quando Deus busca de volta o sopro de vida concedido, o boneco de barro volta a ser terra. "Terra à terra, cinza à cinza, pó ao pó. Da terra foste formado, à terra tornarás".

Tanto me parece belo quanto consolador, estar integrado no ciclo da vida dessa forma, estando animado pelo sopro divino. Esse vínculo inseparável também ficou conservado em algumas línguas: os humanos são feitos de húmus. A pessoa humana é um pedaço de húmus contendo o sopro divino. Quando os humanos se distanciam e alienam da terra, esse vínculo sagrado é destruído. Matar uma pessoa humana significa machucar a terra. Ferir a terra significa matar pessoas humanas. O húmus grita por causa da morte de Abel e abre sua boca para absorver o seu sangue (Gn 4.10s). O húmus é tão sagrado como a vida humana. Somente nesse vínculo sagrado é pensável haver um futuro sustentável. O outro relato da criação é atribuído a autores sacerdotais. Originou-se nos círculos favoráveis à monarquia na área urbana. Nela falta completamente a ligação entre a pessoa humana e a terra. São sublinhados a imagem e semelhança a Deus e o domínio sobre animais e plantas. Nenhuma palavra sobre Adão ou adamah. Enquanto o relato tribal encerra, encarregando os humanos de cultivar e guardar a criação na qual foram integrados, esse relato estatal fala de dominar e sujeitar. Trata a pessoa humana como um ser destacado da criação restante, trata-o exclusivamente como sujeito e agente, trata o restante da criação como objeto, caracteriza a relação entre humanos e restante da criação como uma relação assimétrica, desigual.

Os verbos hebraicos que descrevem o domínio dos humanos sobre o restante da criação têm significados de graves consequências. No original significam "pisotear, pisar com os pés (como quando se pisa uvas para o vinho), subjugar um país através de guerra, violentar sexualmente, submeter à escravidão".

Será que toda a cultura e ciência ocidental deixaram guiar-se por esse relato da criação, deixando o outro para trás, como um romantismo agrícola anacrônico? Seguramente isso não teria sido possível, sem a correspondente legitimação teológica e eclesiástica.

Não é acaso termos conservado a tradição de dois relatos da criação. Não podemos ver o nosso domínio sobre a terra como que num espelho. No outro somos lembrados de nossa ligação com a terra. O conceito de domínio foi amplamente aplicado e resultou no que estamos vendo e vivenciando.

Trouxe progresso tecnológico e o sentimento de que os humanos na verdade são os verdadeiros deuses e criadores (Salmo 8 "Fizeste o ser humano inferior somente a ti mesmo e lhe deste a glória e a honra de um rei..." v. 5).

Não é um acaso isolado que Deus foi declarado morto no auge do modernismo europeu.

Diante de todas as mazelas ambientais e da violência na terra, é hora de nos inspirarmos e de nos dedicarmos ao relato da criação que fala dos humanos criados a partir do húmus, emprestando os olhos dos povos indígenas e buscando analogias em seus mitos para compreendê-lo ainda melhor. A terra é herança da humanidade, como o é a luz do sol, o ar e a água. Se não trabalharmos contra a longa mercantilização da terra, daqui a pouco teremos que pagar pela água, pelo ar e pela luz do sol. Todo o pedaço de terra é sagrado para o nosso Deus. Juntos com os animais, nós somos pedaços de húmus animados pelo sopro divino. Será utopia almejar que se possa tirar a terra do conjunto de bens que o deus-mercado quer manter como mercadoria? Do livro,  Húmus de Deus". de Maurício de Souza Lino.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Total de visualizações de página