O grande princípio da vida divina é a fé —uma fé simples, enérgica e sincera—, uma fé que simplesmente se apossa e goza de tudo o que Deus nos tem dado; uma fé que põe a alma na posse das verdades eternas e que aí a mantém de uma maneira habitual. Isto é certo para o povo de Deus em todas as épocas; a divisa divina é sempre: “Conforme a vossa fé vos seja feito.” (Mateus 9:29 )(1) Não há nenhum limite. A fé pode apoderar-se de tudo o que Deus revela; e tudo o que a fé pode segurar, a alma pode desfrutá-lo de forma permanente.
É bom ter isto presente. Todos nós vivemos muito, mas muito, por debaixo do nível dos nossos privilégios. Muitos de nós estamos satisfeitos por nos movermos a uma grande distância do bendito Centro de todos os nossos gozos. Estamos contentes simplesmente por conhecer a salvação, gostamos muito pouco da santa comunhão com a pessoa do Salvador. Conformamo-nos, meramente, por saber que existe uma relação, sem cultivar, com afinco e zelo, os afectos que lhe pertencem. Esta é a causa de grande parte da nossa frialdade e esterilidade. Assim como no sistema solar quanto mais longe do Sol se acha um planeta, mais frio é o seu clima e mais lento o seu movimento, assim também, no «sistema espiritual», quanto mais se afaste alguém de Cristo mais frio será o estado do seu coração no que diz respeito a Ele e mais lento o seu movimento em torno d’Ele. Por outro lado, o fervor e a presteza serão sempre o resultado de uma sentida proximidade a esse Sol central, a essa grande Fonte de calor e luz.
Quanto mais penetremos no poder do amor de Cristo e mais realizemos a Sua permanente presença connosco, mais intolerável sentiremos o que é estar um minuto longe dEle. Tudo aquilo que tenda a afastar os nossos corações dEle ou o que se interponha entre Ele e a nossa alma, ocultando a luz da Sua bendita face, será temido e evitado. O coração que tenha aprendido de verdade algo do amor de Cristo, não pode viver sem Ele; e mais, deve desprender-se de tudo por este amor. Quando está longe dEle, nada sente excepto a tenebrosidade da meia-noite e a gelada brisa do Inverno. Mas, na Sua presença, a alma pode remontar-se para cima como a cotovia que se eleva para o azul e brilhante céu para saudar, com o seu alegre canto, os raios do Sol que assomam pela manhã.
Não há nada que tão profundamente mais manifeste a arraigada incredulidade dos nossos corações que o facto de que sejamos tão poucos os que pensamos alguma vez em aspirar a ir mais além do simples abc, quando o nosso Deus quereria ter-nos gozando a comunhão com as mais elevadas verdades. Os nossos corações não suspiram —como deveriam— pelos mais altos caminhos da erudição espiritual. Conformamo-nos com ter assentado os alicerces, e não nos preocupamos —como deveríamos— por juntar todo o atinente ao edifício espiritual. Claro está que não podemos prescindir do abc, ou fundamento; isso seria, evidentemente, impossível. O erudito mais avançado tem de levar consigo o abc, e quanto mais alto se construa o edifício, mais se fará sentir a necessidade de um fundamento sólido.
Mas consideremos o povo de Israel. A sua história está cheia de ricas instruções para nós. “Estão escritas para aviso nosso” (1Co 10:11). Devemos contemplar os israelitas em três posições diferentes, a saber: —Resguardados pelo sangue;—Triunfantes sobre Amalek; e, —Introduzidos na terra de Canaan.
Ora está claro que um israelita na terra de Canaan não tinha perdido, de modo algum, o valor dos dois primeiros itens. Não se achava menos eximido (2) do juízo, nem menos libertado da espada de Amalek porque estivera na terra de Canaan. De maneira nenhuma, o leite e o mel, as uvas e as romãs dessa formosa terra não poderiam fazer outra coisa que acrescentar o valor desse precioso sangue que os havia preservado da espada do feridor, e contribuir para a prova más indubitável de haver escapado das cruéis garras de Amalek.
Contudo, ninguém se atreveria a dizer que um israelita não deveria ter procurado nada para lá do sangue rociado (3)no dintel (4). Claro está que ele devia ter fixado os seus olhos nas colinas cobertas de vinhas na terra prometida, e ter dito: «Aí jaz a herdade que me tem sido destinada e, pela graça do Deus de Abraão, não estarei satisfeito nem tranquilo até que plante triunfalmente o meu pé sobre ela». O dintel ensanguentado era o ponto de partida; a terra prometida, a meta. Era o alto privilégio de Israel não só ter a segurança da plena libertação da mão de Faraó e da espada de Amalek, mas também cruzar o Jordão e colher as dulcíssimas uvas de Escol. Era um pecado e uma vergonha que, tendo ante si os frondosos racemos (5)de Escol, eles pudessem alguma vez desejar “os alhos-porros, as cebolas e os alhos” do Egipto.
Mas, a que se deveu isto? Que foi o que os deteve? Precisamente aquilo tão ofensivo que dia a dia e momento a momento nos priva do precioso privilégio de subir aos mais altos degraus da vida divina. E, de que se trata? Da INCREDULIDADE! “E vemos que não puderam entrar por causa da sua incredulidade.” (Hb 3:19). Isto foi o que fez com que Israel andasse errante pelo deserto durante quarenta tediosos anos. Em lugar de mirar o poder de Jeová para fazê-los entrar na terra, miraram o poder do inimigo para impedir que entrassem nela. Assim foi como fracassaram. Em vão os espias —quem eles mesmos propuseram que fossem enviados (Dt 1:22 ) (6) deram uma informação muito atractiva do carácter da terra (7). Em vão puseram ante os olhos da congregação um racemo (8) das uvas de Escol, tão volumoso que teve de ser trazido por dois homens num pau. Tudo foi inútil. O espírito de incredulidade havia-se apoderado dos seus corações. Uma coisa era admirar as uvas de Escol quando foram trazidas até à entrada das suas tendas pela energia de outros, e outra, muito distinta, era ir por si mesmo, com a energia da fé pessoal, ir colher essas uvas.
E, se doze homens puderam chegar até Escol, porque não conseguiriam seiscentos mil chegar até Escol? Acaso a mão que protegeu os espias, não poderia, do mesmo modo, proteger todo o povo de Israel? A fé diz: «sim», mas a incredulidade evade a responsabilidade e acovarda-se ante as dificuldades. O povo não estava mais desejoso de avançar, depois do retorno dos espias, do que antes deles terem sido enviados. O povo achava-se num estado de incredulidade, tanto no princípio como no fim. E, qual foi o resultado disso? Por que é que de seiscentos mil homens que saíram do Egipto só dois tiveram a energia suficiente para plantar os seus pés na terra de Canaan? Isto relata-nos algo; profere uma voz que ressoa com força; ensina-nos uma lição. Oxalá que tenhamos ouvidos para ouvir e corações para entender!
Alguns talvez possam arguir que todavia ainda não havia chegado o tempo para que Israel entrasse na terra de Canaan, “porque a medida da injustiça dos amorreus não está ainda cheia” (Gn 15:16). Isto é tratar só de um lado da questão, quando deveremos considerar os dois lados do assunto. O Apóstolo declara expressamente que Israel não pode “entrar por causa da sua incredulidade” (Hb 3:19). Não aduz como razão “a maldade do amorreu” nem nenhum secreto conselho de Deus a esse respeito. Simplesmente dá como razão a incredulidade do povo. Os israelitas, se o tivessem querido, poderiam ter entrado na terra. Nada pode ser mais injustificado que fazer uso dos inescrutáveis conselhos e decretos de Deus com o objectivo de arrojar pela borda a solene responsabilidade do homem. Deveremos resignarmo-nos a abandonar a culpável desídia (9) da incredulidade como causa do fracasso do povo devido a eternos decretos de Deus acerca dos quais não sabemos nada? Afirmar tal coisa só pode ser apelidado de «extravagância monstruosa»; é o indefectível resultado de forçar uma verdade até ao ponto de interferir no espectro de acção de outra verdade igualmente importante. Devemos dar a cada verdade o lugar que lhe corresponde. Somos muito propensos a sermos extremistas, para desenvolvermos uma verdade isolada, sem deixar que outra, igualmente importante, sequer deite raízes. Sabemos que, a menos que Deus bendiga o trabalho do lavrador, não haverá colheita no tempo da sega. Pois bem, acaso isto exime o diligente uso do arado e da trilha? Por certo que não, pois o Deus que tem designado a colheita como fim, é o mesmo que estabeleceu o paciente labor como meio.
O mesmo sucede no mundo espiritual. O fim estabelecido por Deus nunca deve separar-se do meio designado por Ele. Se Israel tivesse confiado em Deus e tivesse subido à terra, a congregação ter-se-ia deleitado com os exuberantes racimos de Escol. Mas não o fez. As uvas que se viam, sem dúvida, eram deleitosas; isto era evidente para todos. Os espias viram-se constrangidos a admitir que a terra fluía leite e mel. Contudo, ou no entanto, não faltou um «mas». Porquê? Porque não confiavam em Deus. Ele já tinha declarado a Moisés o carácter da terra, e o seu testemunho devia ter sido amplamente suficiente. Tinha dito, da maneira mais enfática: “Portanto desci para livrá-lo da mão dos egípcios, e para fazê-lo subir daquela terra, a uma terra boa e larga, a uma terra que mana leite e mel...” (Ex 3:8). Isto não deveria ser suficiente? A descrição de Jeová não era muito mais confiável que a do homem? Sim, para a fé, mas não para a incredulidade. Esta última nunca se sente satisfeita com o testemunho de Deus, mas que deve ter o testemunho dos sentidos naturais. Deus havia dito que era uma terra que “fluiu leite e mel”. Os espias reconheceram-no. Mas, logo deram ouvidos ao «aditivo humano»: “O povo, porém, que habita nessa terra é poderoso, e as cidades fortificadas e mui grandes; e também ali vimos os filhos de Enac. Também vimos ali gigantes, filhos de Enac, descendentes dos gigantes; e éramos aos nossos olhos como gafanhotos, e assim também éramos aos seus olhos.” (Nm 13:28, 33)
E assim foi como obraram. Eles “viram” somente as ameaçadoras muralhas e os gigantes altos como torres. Não viram a Jeová, porque miraram com os olhos dos sentidos e não com os olhos da fé. Deus ficava excluído. Ele jamais é tido em conta nos cálculos da incredulidade. Esta poderá ver muralhas e gigantes, mas não pode ver a Deus. É a fé somente a que pode sustentar a alguém “como vendo o invisível” (Hb 11:27). Os espias podiam declarar o que eles eram segundo o seu próprio parecer –assim que eles lhes pareciam gigantes, mas não se diz uma só palavra acerca do que eles eram segundo o parecer de Deus. Nunca pensaram nisso. A terra era tudo o que alguém podia desejar, mas as dificuldades eram demasiado grandes para eles, e não tiveram fé para confiar em Deus. A missão dos espias foi uma tentativa frustrada. Os israelitas “desprezaram a terra aprazível” (Sl 106:24), e “em seu coração se tornaram ao Egipto” (At 7:39).
Isto resume tudo. A incredulidade impediu que Israel vindimasse as uvas de Escol, e o enviou de volta a errar pelo deserto durante quarenta anos; e estas coisas “estão escritas para nos admoestar”. Oxalá que possamos sopesar (10) a lição com solenidade e oração! Dos seiscentos mil homens que saíram do Egipto somente dois plantaram os seus pés nas fecundas colinas de Palestina! Aqueles que cruzaram o mar Vermelho, triunfaram sobre Amalek, mas acobardaram-se e retrocederam ante “os filhos de Enac” (Nm 13:28), tanto mais que para Jeová estes últimos não eram superiores aos primeiros.
Pois bem, que o leitor cristão pondere tudo isto. O principal objectivo deste artigo é animá-lo a que suba aos mais altos graus da vida da fé, e a andar por eles com a energia de uma absoluta e inquebrantável confiança em Cristo. Uma vez que tenhamos posto o nosso sólido fundamento no sangue da Cruz, o nosso privilégio não é unicamente o de obter a vitória sobre Amalek (ou sobre o pecado que mora em nós), mas também o de saborear o grão da terra de Canaan, o de vindimar as uvas de Escol e o de deleitarmo-nos com as fontes que destilam leite e mel. Por outras palavras, o adentrar-se nas vivas e elevadas experiências que fluem da habitual comunhão com um Cristo ressuscitado, com Quem estamos unidos pelo poder duma vida imorredoira. Uma coisa é saber que os nossos pecados foram apagados pelo sangue de Cristo, e outra é saber que Cristo tem destruído o poder do pecado que habita em nós. E outra coisa ainda mais elevada é viver numa inquebrantável comunhão com Ele. Não é que percamos o sentido das duas primeiras coisas quando vivemos pelo poder da última. Pelo contrário. Quanto mais perto de Cristo eu caminhe, mais estou vivendo pela fé em meu coração; mais valorizarei tudo o que Ele tem feito por mim, tanto ao perdoar os meus pecados como ao subjugar por completo a minha velha natureza. Quanto mais alto for o edifício, mais valorizarei o sólido fundamento que o sustem. É um grande erro supor que aqueles que se expandem nas mais altas esferas da vida espiritual podem subestimar o diploma em virtude do qual são capazes de aceder a elas. Oh, não! A linguagem daqueles que têm entrado no mais recôndito lugar do supremo santuário é: “Aquele que nos amou, e em seu sangue nos lavou dos nossos pecados” (Ap 1:5). Os seus lábios falam do amor que têm no coração a Cristo e do sangue da Sua Cruz. Quanto mais se acercam ao Trono, mais se embebem do valor daquilo que os colocou em tão sublime elevação. E o mesmo em relação a nós: quanto mais respiremos a atmosfera da presença divina —quanto mais pisarmos, em espírito, os átrios do santuário celestial— mais alta será a nossa estima das riquezas do amor que nos redimiu. Vindimar as uvas de Escol na Canaan celestial dará um sentido más profundo ao valor desse precioso sangue que nos foi por escudo diante da espada do feridor.
Não sejamos, pois, dissuadidos de aspirar a uma mais elevada e entranhável consagração a Cristo por um falso temor de subestimar essas preciosas verdades que encheram os nossos corações de paz celestial quando empreendemos a marcha no princípio da nossa carreira cristã. O inimigo utilizará tudo o que esteja ao seu alcance a fim de impedir que o Israel espiritual plante o pé da fé na Canaan espiritual. Procurará mantê-los ocupados convosco mesmos e com as dificuldades que se apresentam no vosso caminho até ao Céu. Ele sabe que, quando alguém provou realmente as uvas de Escol, já não se trata de uma questão de escapar de Faraó ou de Amalek, e por isso põe diante da passagem do seu caminho as muralhas e os gigantes, assim como a sua própria insignificância, debilidade e indignidade. Mas a resposta é simples e contundente: confiança! Confiança! CONFIANÇA! Sim, desde o sangue no dintel no Egipto até às extraordinárias e excelentes uvas de Escol, tudo é simples, absoluta e indubitável confiança em Cristo. “Pela fé celebrou a páscoa e a aspersão do sangue” e “pela fé caíram os muros de Jericó” (Hb 11:28, 30). Desde o lugar de partida até à meta, e durante todo o período intermédio, “o justo viverá pela fé” (Rm 1:17).
Mas, nunca nos olvidemos que esta fé implica a absoluta entrega de coração a Cristo, assim como a plena aceitação de Cristo pelo coração. Leitor, sopesamos isto com a maior gravidade. Cristo deve ser inteiramente para o coração e o coração inteiramente para Cristo. Separar estas coisas é ser –tal como alguém o assinalou– «como um bote (11) com um só remo, que dá voltas e voltas ao redor de si mesmo, mas que não é capaz de avançar um só metro, sendo unicamente arrastado pela corrente; ou como um passarinho com uma asa quebrada que volteia como remoinho, caindo por terra uma e outra vez». Isto perde-se de vista com demasiada frequência, e por isso o rumo torna-se incerto e a experiência titubeante. Não há progresso. Ninguém pode esperar andar com Cristo por uma mão e com o mundo pela outra. Nunca poderemos deleitarmo-nos com “as uvas de Escol” enquanto os nossos corações estiverem anelando “pelas panelas de carne” do Egipto (Ex 16:3).
Queira o Senhor darmo-nos um coração íntegro –um olho bom– e uma mente recta. Oxalá que tenhamos como único objecto das nossas almas o avançar até ao alto sem dar um só passo atrás. Temos tudo divina e eternamente assegurado pelo sangue da Cruz; prossigamos, pois, com santa energia e integridade “para o alvo, pelo prémio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus.” (Fl 3:14).
Oh, maravilhosa graça! Oh, divino amor!
Manifestados ao darem-nos semelhante lar.
Renunciemos às coisas presentes
E busquemos o descanso por vir.
Tenhamos tudo o demais por lixo e escória;
prossigamos a carreira até à meta;
Lutemos até ganhar a coroa da vida.
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