quinta-feira, 19 de abril de 2018

A Vida e o Sangue


Os antigos pensavam que a vida estava no sangue e Israel participava da mesma opinião, por isso tinha três prescrições acerca do sangue (Gn 9,4 e Dt 12,23)         
1ª) é proibido comer o sangue ou a carne com sangue;
2ª) é proibido derramar o sangue de outra pessoa;
3ª) é proibido oferecer sangue em sacrifício aos deuses.

Mas como os antigos chegaram a essa concepção de que a vida estava no sangue? Os passos para se chegar a esta concepção foram os seguintes:

§  Os antigos tinham uma medicina elementar.
§  Mas eles notaram que o bebê só pode ser considerado vivo depois que inspira (e chora).
§  Observaram também que uma pessoa só poderia ser considerada morta depois que expirasse (e não mais inspirasse).
§  Deduziram que a alma estava na respiração. Então: a alma era o ar. E entrava na pessoa pelo nariz, quando esta nascia, e saia pelo nariz, quando esta morria.
§  Então eles se perguntaram: “Durante a vida onde fica a alma na pessoa? Ou seja, que parte do corpo é a sede da alma?”.
§  E veio uma nova observação da realidade: os soldados feridos em batalha sangravam.
§  O sangue, ao sair do corpo deles, borbulhava. Logo, o sangue continha ar.
§  Enquanto existia sangue no ferido ele permanecia vivo. Mas quando o sangue saía por completo, ele morria.
§   
Logo, a religiosidade chegou à seguinte conclusão:
A alma é o ar. Entra no corpo pelo nariz e vai para o sangue. Logo concluíram: a alma está no sangue. Daí a proibição de Dt.  O texto de Dt 12,23 diz o seguinte:

 “Somente empenha-te em não comeres o sangue, pois o sangue é a vida;
pelo que não comerás a vida juntamente com a carne

Mas que vida é esta? Em hebraico, vida é nephesh, significando também personalidade, individualidade, instinto ou emoção. A Septuaginta traduziu nephesh (vida) para o grego com a expressão psyché, que deu psique.
A vulgata traduziu psyché por anima. Então, em latim, ficou assim a tradução: “hoc solum cave ne sanguinem comedas sanguis enim eorum pro anima est et idcirco non debes animam comedere cum carnibus” ( Dt 12,23). Anima significa alma ou vida, ânimo, aquilo que anima. Logo, alguns entenderam que comer o sangue era comer a alma. Daí para a polêmica sobre a transfusão de sangue foi um pulo. Há quem condene a transfusão de sangue baseando-se no texto de Dt 12,23, argumentando, segundo a tradução da vulgata, que o sangue é a alma, e, assim sendo, quem está doando sangue está doando a alma para outrem e quem está recebendo a doação está, evidentemente também, recebendo a vida do outro. Entendem, pois, que a transfusão de sangue é o mesmo que comer o sangue.

Compreensão equivocada, certamente, que necessita de correção. A alma não está no sangue, nem em nenhuma outra parte localizável do corpo. A alma é a pessoa, sua identidade, seu modo de ser, o conjunto de características natas e adquiridas que fazem a gente ser quem é diante de si, dos outros e de Deus. Não é porque doamos sangue para alguém que tiramos um pedaço da alma. Muito menos, ao receber uma doação de sangue, recebemos a alma do doador. Recebemos sim sua generosidade, sua gratuidade em partilhar a vida e isso diz algo sobre ela, mas sua alma não vem no sangue recebido.

Que fique bem claro: na bíblia, não há nenhuma proibição quanto à transfusão de sangue. Naquele tempo, ninguém pensava sobre a possibilidade de doar sangue para outrem. Há na Bíblia uma proibição de comer sangue, o que é compreensível para aquele tempo, conforme vimos acima. Tal proibição vem de uma compreensão equivocada acerca do sopro de vida que habita em nós. Sobre a transfusão de sangue é bom dizer uma palavrinha. Para quem precisa receber sangue, nada de escrúpulos ou culpa. É só um procedimento médico como qualquer outro. Para quem doa sangue é bom lembrar: não há maior amor do que dar a vida pelo outro. Doar sangue é sinal de amor e desprendimento. Podendo ajudar, por que não fazê-lo?

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