terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

A Batalha entre o Carnaval e a Quaresma

The Battle of Carnival and Lent (Kampf zwischen Fasching und Fasten), 1559, Pieter Bruegel the Elder
The Battle of Carnival and Lent (Kampf zwischen Fasching und Fasten), 1559, Pieter Bruegel the Elder (Flemish Northern Renaissance Painter, ca.1525-1569), oil on panel, 118 cm × 164 cm (46 in × 65 in), Kunsthistorisches Museum, Vienna, Austria. Large size here.
A Batalha entre o Carnaval e Quaresma evoca o contexto religioso nos Países Baixos em meados do século dezesseis. O óleo sobre painel de madeira, do pincel renascentista de Pieter Bruegel, encontra-se no Kunsthistorisches Museum (Museu de História da Arte), em Viena, Áustria. A obra retrata uma hospedaria (pousada ou taverna) no lado esquerdo e uma igreja (catedral) no lado direito. No centro inferior da tela se encontram as duas figuras emblemáticas. Do lado direito, uma mulher (Quaresma) encabeça a procissão na qual o séquito se desdobra em ações filantrópicas. A magérrima senhora Quaresma está assentada em uma pequena carroça puxada por um monge e uma freira. Do lado esquerdo, encabeçando os festejos estridentes junto à pousada, um “cavaleiro” obeso, literalmente montado em um barril de cerveja com uma bisteca de porco espetada, representa o Carnaval. A bolsa de facas em seu cinto indica que ele é um açougueiro. Em vez de capacetes, os personagens portam, respectivamente, colmeia e torta de carne; em vez de lanças, instrumentos com arenques e carne de porco.
DETAIL: The Battle of Carnival and Lent (Kampf zwischen Fasching und Fasten), 1559, Pieter Bruegel the Elder
DETAIL: The Battle of Carnival and Lent (Kampf zwischen Fasching und Fasten), 1559, Pieter Bruegel the Elder
De um lado, uma barraca de peixes; do outro, dois carros alegóricos. De um lado, a encenação popular denominada “A Noiva Suja” (The Dirty Bride); do outro, um grupo de aleijados sai para mendigar, enquanto passa uma procissão de leprosos liderada por um tocador de gaita… O cenário ao fundo é dominado por pessoas que trabalham, principalmente com alimentos. Observe que, à entrada da igreja, encontram-se estátuas veladas, retratando o costume católico de cobrir todas as obras de arte na Quaresma até o domingo de Páscoa. A celebração da ressurreição de Cristo era sinalizada pelo desvelar das esculturas e pinturas.
DETAIL: The Battle of Carnival and Lent (Kampf zwischen Fasching und Fasten), 1559, Pieter Bruegel the Elder  
DETAIL: The Battle of Carnival and Lent (Kampf zwischen Fasching und Fasten), 1559, Pieter Bruegel the Elder
DETAIL: The Battle of Carnival and Lent (Kampf zwischen Fasching und Fasten), 1559, Pieter Bruegel the Elder
A pintura de Bruegel, rica em alegorias e simbolismos, é claramente provocante e satírica. Diversas e infindáveis interpretações têm sido oferecidas. Alguns sugerem o conflito religioso oriundo da Reforma Protestante e a reação da Contrarreforma, emanada do Concílio de Trento em 1547. Ao lado do carnaval está um tocador de alaúde, que era um símbolo frequente do luteranismo. Os reformadores luteranos tinham abolido a Quaresma, mas em seus territórios o carnaval ainda resistia. Outros sugerem o contexto econômico, resultante do calendário religioso, com a transição entre dois diferentes pratos sazonais. A oferta de carne de gado, em alta, teve seu comércio estancado com a abstinência forçada no período da Quaresma. Os açougues são fechados e os açougueiros viajam para o campo a fim de comprar o gado para a primavera. Alguns interpretam a obra como “o triunfo da Quaresma”, uma vez que a figura do Carnaval parece se despedir com a mão esquerda e com os olhos levantados para o céu. Observe ainda, no centro da tela, de costas, um par recém-casado, com a mulher portando uma luminária apagada nas costas. O casal é guiado por um bobo com uma tocha acesa. Alguns sugerem que este trio seria uma representação alegórica da Razão no contexto da batalha tematizada. 
DETAIL: The Battle of Carnival and Lent (Kampf zwischen Fasching und Fasten), 1559, Pieter Bruegel the Elder 
DETAIL: The Battle of Carnival and Lent (Kampf zwischen Fasching und Fasten), 1559, Pieter Bruegel the Elder
Após a morte de Bruegel, o seu filho, Pieter Bruegel “O Jovem”, 1564-1636, fez uma cópia desta pintura, enfatizando os aspectos enciclopédicos e oferecendo algumas variações no conteúdo. Apesar de reproduzir o tema de seu pai, a tela de Bruegel II manifesta amplitude cromática, sutileza nas cores, assim como um extremo cuidado oferecido a cada detalhe. Entre alguns detalhes posteriores, observe o aleijado com o torso nu à direita, a pessoa transportada na pequena carroça puxada pela pobre mulher, e o cadáver de corpo inchado no canto inferior direito.
The Battle between Carnival and Lent, second half of 16th century, Pieter Brueghel the Younger
The Battle between Carnival and Lent, second half of 16th century, Pieter Bruegel the Younger (Flemish Northern Renaissance Painter, ca.1564-1638), oil on canvas, 119.4 x 171.2 cm (47 x 67 3/8 in.), Private Collection. Large size here.
Na retratação de Bruegel para a espiritualidade cristã de sua época, os seres humanos são situados no confronto entre licenciosidades e abstinências, entre o festejo e a devoção, entre o prazer e a castidade, entre o riso e o luto, entre a austeridade e a extravagância, entre a prática da caridade e a vida de dissipação… O cenário pressupõe a espiritualidade platônica, que até hoje se manifesta no dualismo entre o “sagrado” e o “profano” – tão fortemente arraigado no mais influente paradigma brasileiro de espiritualidade. Na base reside um dilema antigo que, aliás, marcou alguns embates na fase tardia da filosofia grega entre os epicureus e estóicos – duas escolas que rivalizavam em Atenas quando lá chegou o apóstolo Paulo. Como situar-se entre o hedonismo e o ascetismo, numa perspectiva integrada e não dualista?
Bruegel pintou o seu quadro com um “olhar de pássaro”, numa tentativa, talvez ilusória, de que pudesse descolar-se da polêmica religiosa de seu tempo. Saliente-se, não obstante, que a perspectiva bíblica acerca do ser humano não é mesmo a concepção platônica. Aquela relata que Deus criou o ser humano; as doutrinas cristãs da encarnação do Logos e da ressurreição corpórea implicam, ademais, em que o ser humano é importante na sua totalidade. A perspectiva cristã foi sintetizada por Francis Schaeffer:
Portanto, o ensino bíblico se opõe ao platônico, segundo o qual a alma (o “superior”) é muito importante enquanto o corpo (o “inferior”) fica com bem reduzida importância. A concepção bíblica opõe-se, de igual modo, à posição humanista, em que o corpo e a mente autônoma assumem grande relevância mas a graça se faz praticamente destituída de significação.
(…) Nem a concepção platônica nem a humanista satisfaz. Primeiro, Deus fez o homem todo e está interessado na totalidade do ser humano. Segundo, quando se deu a Queda, fato histórico que ocorreu no tempo e no espaço, ela afetou o homem inteiro. Terceiro, à base da obra de Cristo como Salvador e mercê do conhecimento que temos na revelação das Escrituras, há redenção para o homem no seu todo.
(SCHAEFFER, Francis. A Morte da Razão. São Paulo: ABU & FIEL, 1986, pp. 27-28)

http://gilsonsantos.com/tag/kunsthistorisches-museum/ 

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