Um Deus capaz de abrir passagem no meio do mar, não poderia ter arrebatado Seu povo, levando-o diretamente para a Terra Prometida? Então, por que não o fez? Por que não poupá-los do desgaste provocado por quarenta anos no deserto? O próprio Deus assume a responsabilidade sobre isso, dizendo: "Tirei-os da terra do Egito, e os levei ao deserto" (Ez.20:10). Portanto, não foi um acidente de percurso. Havia propósito nisso.
E mais: há quem diga que essa travessia poderia ser feita em quarenta dias. Outros acreditam que no máximo em dois anos. Então, por que demoraram tanto? Teriam eles andado em círculo? Ou teriam feito muitas paradas? Entre a saída do Egito e a zona fronteiriça de Canaã, o povo de Israel fez quarenta paradas. Era necessário que o povo descansasse. Havia muitas crianças e idosos entre eles.
Quarenta anos foi o tempo necessário para que aquele povo olvidasse o Egito. Tirá-los de lá não foi tão difícil quanto tirar o Egito de seus corações. Afinal, foram mais de quatro séculos vivendo sob a égide dos Farós. Ademais, algumas lições imprescindíveis só poderiam ser aprendidas naquele ambiente hostil.
Como toda aquela gente poderia sobreviver num ambiente inóspito como o deserto? Somos informados de que Deus provera uma nuvem para lhes proporcionar sombra durante o dia. Esta mesma nuvem se transformava numa coluna de fogo para aquecê-los durante as noites frias. O deserto é um lugar de extremos. Suas temperaturas alcançam mais de cinquenta graus durante o dia, e caem abaixo de zero à noite. A coluna de fogo também servia para espantar os animais selvagens. Aquela nuvem/coluna também serviu-lhe como uma espécie de GPS. Quando a nuvem estacionava, eles acampanham. Quando avançava, eles prosseguiam.
Parada obrigatória, desejada por todo caminhante do deserto, o oásis é um lugar de recobrar as forças. Muitos, no afã de encontrá-lo, acabam sendo enganados por uma miragem. Tão logo avistam o que parece ser um lago cercado de palmeiras, saem correndo, e ao mergulharem dão de cara com a areia.
Além das constantes intervenções divinas, garantindo provisão, o povo hebreu passou por vários Oásis, entre os quais, o Oásis de Mara, o Oásis de Elim e o Oásis de Refidim. Cada um desses Oásis representa uma etapa de nossa jornada espiritual.
É Mara!
Três dias depois de terem atravessado o Mar Vermelho, os hebreus chegaram ao Oásis de Mara. Provavelmente o suprimento de água já havia terminado. Todos estavam sedentos. Porém, as águas de Mara eram intragáveis porque eram salobras. O próprio nome “Mara” significa “amarga”. Isso rendeu muita dor de cabeça a Moisés, pois o povo não cessava de reclamar. Sem saber o que fazer, “Moisés clamou ao Senhor, e o Senhor lhe mostrou uma árvore. Lançou-a Moisés nas águas e as águas se tornaram doces. Ali Deus lhes deu estatutos e uma ordenança, e ali os provou” (Êx.15:25).
A passagem dos hebreus pelo Mar Vermelho representa o momento em que somos batizados (1 Co.10:1-2). Rompemos com o Egito, que representa o mundo, e começamos nossa jornada rumo à Terra Prometida, que representa a glória final. Porém, entre o Egito e Canaã há um deserto que precisa ser atravessado. Não há atalhos. O próprio Jesus, depois de ter sido batizado, foi levado pelo Espírito ao deserto para ser tentado (Mt.4). Não há como queimar esta etapa. É no deserto que nosso caráter é forjado. Lá é o cenário onde experimentamos a provisão de Deus. É lá que aprendemos a depender cada vez mais d’Ele, e a confiar cada vez menos em nossos parcos recursos.
Mara é uma representação de nossa natureza humana. Não deixamos de ser humanos ao nos convertermos, ou sermos batizados. Quando os hebreus avistaram Mara, encheram-se de esperança, achando que finalmente haviam encontrado algo bom no deserto. Quem dera fosse apenas uma miragem. A frustração teria sido menor. Mas Deus usaria aquela decepção para nos dar uma importante lição.
Temos que chegar à mesma conclusão a que chegou Paulo, que mesmo depois de convertido afirmou: “Eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum” (Rm.7:18a).
Que decepção sofremos quando nos damos conta de que aquele velho “eu” persiste em nos assombrar, e que os velhos apetites e vicissitudes ainda residem em nossos próprios membros. O fato incontestável é que nossa carne jamais se converterá (Rm.8:7). Não importa se fomos batizados com pouca ou muita água, se num tanque batismal ou no rio Jordão. Nem batismo em óleo quente resolveria! Não importa quantos jejuns façamos a cada semana. Teremos que conviver com natureza adâmica pecaminosa até o fim de nossa existência terrena. Entramos, então, numa crise antes desconhecida, enquanto vivíamos sob o domínio do pecado. Se de um lado, somos impulsionados pelo Espírito a fazer o que é certo, do outro lado, temos que lidar com as pulsões da nossa natureza pecaminosa, e com o poder atrativo que o mundo exerce sobre ela. Por isso, Paulo exclama: “Miserável homem que eu sou! Quem me livrará do corpo desta morte?” (Rm.7:24). Quem imaginaria ouvir uma exclamação como esta dos lábios de Paulo?
É nesta crise que alguns põem em xeque sua própria conversão. Ora, quem jamais se converteu pra valer, não tem porque preocupar-se com isso. Este tipo de crise só ocorre aos verdadeiramente convertidos.
Para apimentar ainda mais nosso dilema, deparamo-nos com a questão levantada por Tiago: “Pode a fonte jorrar do mesmo manancial água doce e água amarga? Meus irmãos, acaso pode uma figueira produzir azeitonas, ou uma videira figos? Tampouco pode uma fonte de água salgada dar água doce” (Tg.3:11-12).
E agora? Como sair desta? Como administrar este conflito?
Aquela foi a primeira vez que os hebreus consideraram a possibilidade de retornar ao Egito. Afinal, estavam apenas a três dias de lá. Era só dar meia-volta. Da mesma maneira somos tentados a retroceder em nossa caminhada. Parece-nos mais razoável viver escravizados, porém saciados, do que livres, porém sedentos. Pelo menos, no mundo, fazíamos o que nos desse na gana. Sexo, drogas, álcool, tudo estava sempre às mãos. Porém, a liberdade oferecida pelo mundo é ilusória. Recordemo-nos da exortação de Paulo:
"Cristo nos libertou para que sejamos de fato livres. Estai, pois, firmes e não torneis a colocar-vos debaixo do jugo da escravidão" (Gl.5:1).
Será que Deus Se prontificaria a abrir novamente o Mar Vermelho para dar passagem àqueles que retrocedessem? Não! Esses teriam que voltar nadando. rs
A jornada com Deus é um caminho sem volta! Não demos "até logo" ao mundo, e sim "adeus". Por isso, Deus avisou aos hebreus antes de fazê-los passar pela fenda aberta no mar: "Aos egípcios, que hoje vistes, nunca mais vereis para sempre" (Êx.14:13b).
Deixamos de ser mão-de-obra escrava de Faraó! Já não somos engrenagens daquele sistema corrupto. Em vez de súditos do império das trevas, somos agora cidadãos do Reino de Deus. Nossa nova vida é a ferramente usada por Ele para sabotar os esquemas deste mundo tenebroso.
O relato sagrado diz que, ao ser pressionado pela turba enfurecida, Moisés recorreu ao Senhor, que lhe mostrou uma árvore que deveria ser cortada e lançada nas águas para que estas se tornassem potáveis. Essa árvore é uma clara representação da Cruz. É através dela que Deus trata com nossa natureza pecaminosa. Não adianta tentar converter nossa carne. Temos que confrontá-la através da Cruz. E quando me refiro à Cruz, não me refiro ao acontecimento histórico, mas à sua aplicação em nossa vida cotidiana. A simples existência daquela árvore não mudava nada como relação à salubridade das águas de Mara. A árvore tinha que ser lançada às águas. Assim como a Cruz tem que ser aplicada em nossas vidas.
Confira a afirmação de Paulo:
“Estou crucificado com Cristo, e já não vivo, mas Cristo vive em mim. A vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim” (Gl.2:20).
Foi este mesmo apóstolo que declarou considerar-se crucificado para o mundo, ao passo que o mundo estava crucificado para ele (Gl.6:14).
Tem muito cristão sincero querendo filtrar as águas de Mara. Buscam subterfúgios numa religiosidade asceta e legalista. Talvez por desconsiderarem a eficácia da obra da Cruz. Paulo argumenta: “Se estais mortos com Cristo quanto aos rudimentos do mundo, por que vos sujeitais ainda a ordenanças, como se vivêsseis no mundo, como: não toques, não proves, não manuseies? Todas estas coisas estão fadadas ao desaparecimento pelo uso, porque são baseadas em preceitos e ensinamentos dos homens. Têm, na verdade, aparência de sabedoria, em culto voluntário, humildade fingida, e severidade para com o corpo, mas não têm valor algum contra a satisfação da carne” (Cl.2:20-23).
Paulo considerava a Cruz como um fato consumado. Não se tata de submeter-se a um código de conduta severo, ou a uma doutrina comportamental. Não! Não se trata de algo que devemos fazer, mas de algo que devemos considerar já feito. É assim que mergulhamos aquela bendita árvore nas águas amargas do nosso ser.
Veja o que ele diz em outra passagem:
“Pois sabemos isto, que o nosso velho homem foi com ele crucificado, para que o corpo do pecado seja desfeito, a fim de não servirmos mais ao pecado (…) Assim também vós CONSIDERAI-VOS COMO MORTOS para o pecado, mas vivos para Deus em Cristo Jesus nosso Senhor” (Rm.6:6,11).
Nosso ego não pode ser poupado. Nossa fragilidade tem que ser exposta. Nossa natureza pecaminosa tem que ser confrontada. Nossas presunções têm que ser denunciadas. Nossas aspirações carnais renunciadas.
Enquanto a Cruz de Cristo não se tornar em nossa própria Cruz, as águas que fluem de nosso ser se manterão salobras.
Cruz não é playground da alma. É lugar de suplício, de auto-sacrifício, de rendição absoluta. Toda renúncia é dolorosa. Toda rendição é vergonhosa. Só existe uma maneira de suportarmos aquilo que a Cruz nos traz. Veja a recomendação do Espírito Santo:
“Olhando firmemente para Jesus, autor e consumador da nossa fé, o qual pela alegria que lhe estava proposta SUPORTOU A CRUZ, desprezando a ignomínia, e está assentado à destra do trono de Deus. CONSIDERAI aquele que suportou tal oposição dos pecadores contra si mesmo, para que não vos canseis, desfalecendo em vossas almas” (Hb.12:2-3).
Quem está na cruz não pode olhar para si mesmo. Nem mesmo para a cruz em si, uma vez que esta está às suas costas. À sua frente estão os que se opõem, que escarnecem, que lhe pedem prova, exigem evidências de que você é quem diz ser. A pressão é contínua. Todos esperam uma falha sua para apontar o dedo e lhe acusar. Só lhe resta olhar pra cima!
Em momento algum Jesus Se preocupou em provar qualquer coisa. Ele não cedeu à pressão dos que se Lhe opunham. Ele desprezou a ignomínia, isso é, desprezou o desprezo. Quem está crucificado com Cristo não se preocupa em provar nada a ninguém. Antes, considera a maneira como Jesus Se portou durante as seis horas de Seu suplício no madeiro. É mantendo o foco n’Ele, que nossas forças se renovam, e em vez de amargura, o que jorra de nosso interior é um rio de águas vivas. Mas não se engane: Mesmo depois de experimentarmos o poder da Cruz em nossas vidas, teremos que lidar com os resquícios de nossa velha e amarga natureza.
O escritor de Hebreus nos adverte: “Tende cuidado de que ninguém se prive da graça de Deus, e de que nenhuma raiz de amargura, brotando, vos perturbe,e por ela muitos se contaminem” (Hb.12:15). Esta raiz amarga nada mais é do que resquício da natureza adâmica tentando aflorar. Por mais tempo de conversão que tenhamos, temos que manter o cuidado e a vigilância, para que as obras da carne não voltem a germinar em nossa vida. Se sentirmos uma pontinha de inveja de alguém, temos que voltar nossos olhos para Cristo, e suplicar-Lhe graça para que esta raiz não se aprofunde e venha frutificar. Avareza, ressentimentos, idolatria de qualquer espécie, são algumas dessas obras que vire e mexe tentam vir à tona, comprometendo nossa comunhão e testemunho. Por mais cristalinas e potáveis que sejam as águas que fluem nosso interior, elas acabam absorvendo as propriedades dessas raízes amargas, assim como acontece quando mergulhamos folhas de boldo numa xícara de água quente.
Sabe quando essas raízes amargas conseguem brotar em nossas vidas? Quando recorremos à nossa justiça própria, quando deixamos de confiar na obra consumada na cruz, para fiar-nos em nossas realizações pessoais. Somos privados da graça sempre que nos justificamos em nossas obras. “Separados estais de Cristo”, admoesta o apóstolo, “vós os que vos justificais pela lei; da graça tendes caído” (Gl.5:4).
Voltemos à Cruz! Deixemos de lado qualquer justiça própria residual, e confiemos inteiramente na justiça de Cristo que nos é imputada. Somente assim, viveremos em novidade de vida, e seremos mananciais de água doce e potável. Hermes C. Fernandes
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