Ezequiel, o profeta bíblico, comeu um livro repleto de lamentos, prantos e ais. Depois de encher a barriga, afirmou: Eu o comi, e na boca me era doce como mel. [3.3]. Como pode um livro de lamentos ser doce na boca de alguém? Muito estranho alguém gostar de prantear.
Ezequiel precedeu a fala de Jesus: Felizes – bem-aventurados – o que choram porque eles serão consolados. Os que choram conseguem não apenas aliviar as dores do coração; desafogam não só imperativos triunfais. É feliz quem pode expressar angústia sem o patrulhamento dos insensíveis. Alguém já disse que poeta só é poeta se sofrer. É possível dizer também: profeta só é profeta se aprende a lamentar.
Abracei, por anos, uma fé discursiva, triunfalista e racional. Fui treinado a esquecer o valor do lamento. Associei pranto à fraqueza. Achava que a mensagem do Evangelho transforma pessoas em imbatíveis.
Li o judeu Abraham Joshua Heschel e aprendi uma nova dimensão sobre o significado de ser íntimo de Deus. Heschel afirmou que os profetas não foram simples porta-vozes do divino. Eles eram pessoas chamadas para comungar do pathos de Deus — “pathos” é palavra grega para sentimento; sufixo em sim-patia, por exemplo. Para Heschel, o profeta tem o privilégio – e o terrível ônus – de partilhar das emoções divinas. Assim, quando Jeremias chora e lamenta, as lágrimas não são propriamente suas. O profeta se compadece – sente o que Deus sente. E por isso fala.
Paulo percebeu essa identidade profética em Filipenses [1.29]: … a vocês foi dado o privilégio de não apenas crer em Cristo, mas também de sofrer por ele.
Assim, desejo me tornar íntimo de Deus. Não anelo celebrar sua presença, somente, no que é bonito e louvável. Quero aprender a chorar, junto com ele, os horrores de um mundo adoecido e bárbaro.
Quero conhecer o coração de Deus para lamentar a sorte da África, dizimada pelo avanço da Aids. Saberei chorar a morte desnecessária de milhões de crianças que se amontoam em campos de refugiados, expulsas por guerras étnicas. Lamentarei a gula das nações ricas, tão preocupadas consigo mesmas enquanto saqueiam, por todo o Continente, ouro, diamante, petróleo. Sofrerei porque o descaso de Caim está na boca de meus contemporâneos: Sou eu responsável por meu irmão?
Quero conhecer o coração de Deus para lamentar o drama dos pequenos países latino-americanos, sem recursos naturais e sem condições de pagar as dívidas com agentes financeiros transnacionais. Lembrarei que toda a América Latina foi rapinada. Levaram daqui, ouro, prata, cobre, ferro, madeira e banana. Lamentarei não existir uma justiça retributiva para que essas pequenas nações sejam ressarcidas; a contínua sangria da riqueza latino-americana perpetua ciclos de miséria e violência.
Quero conhecer o coração de Deus para lamentar o que acontece em meu país. Os rios viram esgotos, as florestas somem e as praias perdem a virgindade branca, inundadas de lixo. Sentirei o coração apunhalado ao lembrar que o Brasil se tornou uma ameaça para a humanidade — a Amazônia devastada representa, talvez, o desequilíbrio final do planeta.
Quero conhecer melhor o coração de Deus para chorar as clínicas clandestinas de aborto, os cortiços onde jovens negociam barato o corpo, os moquifos onde mendigos se destroem com o crack e as favelas nas margens de córregos fétidos. Desejo compreender como tudo isso chega a Jesus : Da mesma forma, o Pai de vocês, que está nos céus, não quer que nenhum destes pequeninos se perca” [Mateus 18.14].
Quero conhecer melhor o coração de Deus para lamentar o tráfico de menores no sórdido mercado da pedofilia. Quero prantear o Nordeste, que se transforma em rota do turismo sexual. Será que consigo expressar tristeza por meu país se tornar conhecido pela violência? Sinto-me constrangido de saber que o Consulado de vários outros países trata brasileiros como oportunistas, doidos para emigrar, mesmo subempregados.
Quero conhecer melhor o coração de Deus para lamentar que cristãos – católicos e evangélicos – se alinham à geopolítica desastrada do Ocidente. Pranteio por terem apoiado a guerra do Iraque e por inviabilizarem qualquer diálogo com o Islã [triste, muçulmanos confundem cristãos com bombardeio de Drones].
Quero conhecer melhor o coração de Deus para lamentar a perda da credibilidade da religião. Preciso doer com os fracassos morais que se sucedem no clero, que espolia pobre, prega sermões irrelevantes e transforma a fé em mercadoria. Mais perto de Deus, digo que espiritualidade não tem nada a ver com a montanha de obviedades que sai dos púlpitos. Anseio saber me indignar com os discursos vazios, com as promessas irreais e a com banalização do sagrado.
Almejo ser íntimo de Deus, como o profeta Isaías, e poder dizer: Deus detesta festas religiosas e muitas orações; sem fome e sede justiça, revolta contra a opressão e defesa de viúvas e órfãos, todo o culto dá náusea. Ricardo Gondim
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