sábado, 26 de fevereiro de 2011

Entrevista com Agostinho de Hipona

Tenho a impressão de que, hoje como ontem, o grande obstáculo para que muitas pessoas -sejamos sinceros: muitos cristãos - abracem de verdade o cristianismo é a Cruz. Com efeito, por que a religião do amor há de ser a religião da Cruz?

“ Era  preciso mostrar ao homem quanto Deus nos  amou e o que éramos quando nos amou:  "quanto", para que não desesperássemos; "o que éramos", para que não nos  ensoberbecêssemos. Gostaria de dizer ao ouvido de cada um: "A Vida eterna  assumiu a morte, a Vida eterna quis morrer. Não morreu segundo o que era em Si  mesma antes de morrer; morreu segundo O que tinha de comum contigo, depois de  encarnada. De ti recebeu a natureza segundo a qual devia morrer por ti; e  assumiu a morte para matar a tua morte. Escuta-me: és cristão, és membro de  Cristo; considera bem o que és, pensa a que preço foste resgatado. Cristo quis  padecer por ti. Ensinou-te a padecer, e ensinou-te padecendo Ele primeiro.  Ter-lhe-iam parecido muito pouco as suas palavras, se não as tivesse acompanhado  com o seu exemplo".
E como foi que nos ensinou? – o tom agora é intimo, dolorido. Como foi que nos ensinou? Pendia da cruz, e nós nos assanhávamos contra Ele; estava preso à cruz por ásperos cravos, mas não perdia a mansidão. Nós nos enfurecíamos contra Ele, ladrávamos à sua volta como cães e o insultávamos enquanto permanecia pendurado. Como loucos furiosos, atormentávamos o único Médico posto no meio de nós; e no entanto, pendurado, Ele nos curava. Pai, dizia, perdoa-lhes porque não sabem o que jazem. Pedia e pendia; e não descia, porque ia transformar o seu Sangue no remédio para esses loucos furiosos ...
Nós jazíamos mortos na nossa carne de pecado, e Cristo adaptou-se à semelhança da carne de pecado. Porque morreu quem não tinha razão para morrer; morreu o único livre dentre os mortos, porque toda a carne humana era certamente carne de pecado, e ... como é que essa carne haveria de reviver, se Aquele que não tinha pecado não se adaptasse ao morto, vindo até nós sob a semelhança da carne de pecado? Senhor, Tu padeceste por nós, não por Ti, porque não tinhas culpa, e te submeteste à pena para livrar-nos da culpa e da pena! Em conseqüência, também nós devemos recapacitar e dizer: Senhor, compadece-te de mim; cura a minha alma, porque pequei contra Ti.Ó Senhor, dá-me sofrimentos, já que não poupaste o teu Unigênito. Ele foi atormentado, sem ter pecado, e eu ... Se foi retalhado Aquele que não tinha podridão, se a nossa própria Medicina não rejeitou o fogo medicinal, será razoável que nós nos revoltemos contra o Médico e Cirurgião, quer dizer, contra Aquele que nos cura do pecado através dos sofrimentos que nos permite padecer? Entregue- mo-nos em cheio nas mãos do Médico, pois Ele não erra, cortando a carne sã em vez da gangrenada; Ele conhece bem o que ausculta, conhece o vício por ter criado a natureza; conhece bem o que criou e teve de assumir por causa da nossa leviandade.
Não faltam, porém, aqueles que sustentam que isso de "tomar a Cruz" está ultrapassado, e que tudo o que signifique aceitar e buscar o ofrimento não passa de exagero neurótico.
“É preciso entender que foi o homem quem talhou para si mesmo um caminho áspero. Mas esse caminho foi percorrido primeiro por Cristo, no seu regresso para o Pai; e por isso Ele pode dizer-nos: Tome cada um a sua cruz e siga-me. Que significa isto? Que, quando começarmos a segui-lo nas suas virtudes e preceitos, encontraremos muitos que quererão contradizer-nos, muitos que lançarão obstáculos no nosso caminho, e muitos outros que tentarão dissuadir-nos de continuar, e tudo isso até entre aqueles que figuram como nossos companheiros de viagem rumo a Cristo. Devemos lembrar-nos de que, como nos dizem os Evangelhos, aqueles que proibiam os cegos de clamar por Cristo eram gente que caminhava ao lado dEle. Se queremos segui-lo, o melhor que podemos fazer é aceitar como cruzes as censuras, as coisas desagradáveis e todo o tipo de contradições; toleremos tudo, suportemos tudo, e não queiramos chegar logo ao fim. E, ao mesmo tempo, amemos o Único que não decepciona, o Único que não engana; amemo-lo porque é verdade o que promete, mesmo que não no-lo dê imediatamente e a fé ameace titubear. Resistamos, perseveremos, agüentemos, suportemos a demora: tudo isso é levar a nossa cruz. E se de verdade somos cristãos, esperemos tribulações neste mundo, não esperemos por tempos melhores: só nos estaríamos enganando. O que o Evangelho não nos prometeu, não o prometamos a nós mesmos. Quem perseverar com espírito ardente não esfriará na sua caridade; porque dá ouvidos Àquele que não se engana nem engana ninguém; e que nos prometeu a felicidade, não aqui, e sim nEle. E assim, quando tiverem passado todas as coisas desta terra, então poderemos esperar com firmeza que reinaremos com Ele por toda a eternidade
Renúncias, desapego, combate contra as paixões, sofrimentos, tribulações e cruzes ... Não será por causa da insistência nesses temas que muitos consideram a "visão cristã da vida" excessivamente ascética e dura, e dizem e escrevem que sufoca a alegria de viver?
“Os homens toleram de bom grado ser cortados e queimados para evitar o sofrimento de umas dores agudas, não digo já das penas eternas, mas de uma simples ferida um pouco mais grave. Para conseguir uma aposentadoria tranqüila, uma vida lânguida e incerta e de duração muito breve, o soldado - ... - suporta guerras cruéis; vive inquieto talvez durante muitos anos de trabalho, à espera unicamente de poder descansar um pouco. A que tempestades e tormentas não se expõem os mercadores -, só para conseguirem umas riquezas feitas de ar! Que calores, que frios, que precipícios e rios não enfrentam os caçadores, que escassez de comida e bebida, só para capturarem uma besta e satisfazerem assim nãouma necessidade, mas um capricho! Quantos incômodos de noites passadas em branco e de prazeres de que é preciso privar-se não suporta o estudante, não já para aprender a sabedoria, mas pelo dinheiro e pelas honras da vaidade, para aprender a fazer contas, a ler e a mentir com elegância! ... Em todas essas coisas, aqueles que não as amam sofrem com a dureza do que têm de padecer; e os que as amam padecem exatamente o mesmo na aparência, embora não sofram com a sua dureza. Por quê? Porque o amor torna fáceis e praticamente insignificantes todas as coisas duras
e atrozes. Se, para evitar a miséria temporal, a ambição enfrenta trabalhos enormes, com quanto mais facilidade e decisão não fará a caridade o mesmo, quando se trata de evitar a miséria eterna e conseguir a paz duradoura!
Com razão diz-nos o Apóstolo Paulo, cheio de uma imensa alegria: Os padecimentos do tempo presente não têm proporção alguma com a glória futura que se revelará em nós. Já se vê por que dizemos que o jugo de Cristo é suave e a sua carga leve. Se a vida cristã é dificil para os poucos que enveredam por ela, torna-se fácil para os que amam a Deus. Esses caminhos que parecem duros aos que "labutam" - aos que, kantianamente, só enxergam na vida cristã uma série de deveres a cumprir -, são suaves' para os que amam. Por isso, a divina Providência faz com que, o homem interior, que se renova de dia para dia, já não viva sob a Lei, mas sob a graça; libertado - pelo modo como as cumpre - da carga das inúmeras observâncias que constituíam um jugo pesado, mas muito conveniente para domar a sua dura cerviz - o seu orgulho intelectual, diríamos nós -, esse homem respira agora a facilidade de uma fé simples, de uma esperança boa e da santa caridade. Todos os incômodos impostos ao homem exterior tornam-se leves para o homem interior. Nada é tão fácil para uma vontade realmente boa como ser ela mesma, e isso basta para Deus

Trecho extraído do livro "Onde está o meu Deus?" Editora Quadrante

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